Laminagem
Um país
agora imenso aterro
teve alguma
vez colinas e montados
onde o olhar
demorava, adormecia
e seguia uma
alegria viandante?
Ou gente que
chegasse a qualquer mar
de que não
quisesse logo fugir?
Só o
pastoril decrépito o suspirava.
Teve o que
todos tinham, em quantidade escassa,
até
cobrir-se de desterro e de ilegais
e em pano de
fundo esse lagar
de suicidas
e débitos e primeiras segundas gerações.
A farpa de
aceitação de quem consome
o sem
destino da consciência.
Um país;
tornou-se um assassino.
Viverei os
poucos verões até morrer
com
este mundo de agressão em cerco.
Eu queria
outro país, outro lugar
e tenho este
infortúnio de leis amarrotadas
que não
cumprem nem o violento nem o clandestino.
Um país de
acasos,
um parque de
campismo selvagem, um cimento apodrecido,
a música de
sem abrigos nas estações de metro
enquanto não
chegam comboios avariados
às
plataformas de arte depredada,
um
esboroamento sanguinário.
Até a
linguagem que me ergueu
me sabe a
sarro e a arrabalde.
Não fossem
as obrigações que nos garrotam
nos fazem
monstros com a lassidão de herbívoros
talvez
pudesse ter o interior abandonado
e chegasse a
faca do sol e me cortasse
noutra
penúria mais serena.
Ainda que me
digam que não olhe,
eu vejo.
Ainda que me digam faz ginástica
e a
depressão desaparece, nada me resolve.
Os ruídos
sobem de qualquer lugar,
sintetizadores,
martelos, desabamentos
uma
percussão alheia a qualquer justiça.
Nenhuma
janela que não fale
da
construção administrativa dos piores instintos.
Todo o lixo
do humano feito sebo
em qualquer
lugar. Ainda que me digam
que vivemos
em democracia eu digo
que não sei.
Nem direitos nem deveres.
Um sem
remédio ancestral.
Morreu a
casa. Matou-a
o que lhe
coube por contemporâneo
contra a
placidez. Os autorizados
pelo conluio
e pela votação.
Morreu a
casa. E o pior
é não poder
partir. Os laços
já se
juntaram em anestesia. Preso
por outro
amor, que não entende,
que não ouve
como a casa já morreu.
A alguns
vemo-los em qualquer pousio
depois de
fecharem as lojas
e nem se
sabe o que vemos.
Aos balcões
de cafés de azulejo,
com
telemóveis pendurados nos cintos
e os cartões
de crédito em dente na carteira.
Riem-se e
batem nas costas
uns dos
outros, entreolham e vigiam
se alguém
diverso se aproxima
para
largarem uma troça arcaica, e comem
com essa
fome dos que não sofrem ainda
inquietações
laborais ou crêem que virá
depressa o
primeiro emprego.
Ao olhá-los
melhor, aos seus afectos
de pessoal
especializado em escuras economias
adicionais,
vejo-os depois no verão.
Ao deus dará
em todos os lugares,
em tendas
velhas, rulotes,
sabe-se lá
onde vão cagar. E as mulheres
com os
sinais exteriores da aspereza.
E as asas do
inverno marítimo
auguram o
aluimento.
Assim armado
o país.
As gentes em
catástrofe deslocam-se,
deixam por
testemunho o abandono e a inépcia.
Uma a uma,
uma paisagem é trucidada.
Inchou a
autarquias o país.
Atravessam-no
a miséria e algum dinheiro
insolentes.
Um assassino
espreita
outro assassino.
Os que
destroem agora
podem exigir
os torcionários que virão,
pois quem
destrói pressente um chefe
e vai
servi-lo.
E muitos
hão-se sempre ser as vítimas
da liberdade
que consente a violência,
da violência
que não consente a liberdade.
Um assassino
o país. Com as suas leis
inúteis, a
sua ordem por cumprir.
Só nos resta
esperar então morrer?
em Alta Noite em Alta Fraga, Lisboa:
Relógio D’Água, 2001, pp. 77-81.
Sem comentários:
Enviar um comentário