meia-noite todo o dia
Foi este...
E. M. Forster
Mas não se atreveria. Não era próprio de uma dama. Porquê? Por que razão a maior parte das coisas grandes não eram próprias de uma dama? Uma vez Charlotte tinha-lhe explicado porquê. Não é que as mulheres fossem inferiores aos homens, mas eram diferentes. A sua missão era inspirar os outros a realizações em vez de elas próprias realizarem. Indirectamente, através do tacto e de um nome sem mácula, uma dama podia realizar muitas coisas. Mas se se lançava ela própria na refrega, primeiro seria censurada, depois desprezada e finalmente ignorada. Tinham-se escrito poemas para ilustrar este ponto.
José Duarte Saraiva
Feno
(...)
O aroma a café percorre a casa. Sirvo-me excepcionalmente de uma chávena que acompanha pão torrado com manteiga (outra excepção). O dia a esta hora é um mar azul de céu cheio de sol. Continua-se a ouvir o ribeiro. Um cão ladra. E uma voz chama por outra ao longe.
§
Ainda não passou a carrinha do pão. A sua buzina estridente não rasgou o ar.
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Diz o poeta: "faltam os pássaros". Acrescento: faltas tu também. Dizer que sinto agora muito tudo isto é um eufemismo.
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As nuvens deixam ver um pouco do azul do céu e nele o risco de um avião. E de repente o sol explode nas folhas das nogueiras.
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A tarde vai a meio. Apenas metade da vila com sol ainda. Um gato caminha levemente pelo terraço. Saberá ele que a morte também o espera? Ah! Como seria bom viver sem da morte conhecer o preço.
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Calendário
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Durante anos desta mesma janela o imaginar de uma vida longe daqui. Onde muitos viam beleza e paz eu via sufoco e ansiedade. Nada neste lugar me liberta. Nada neste lugar me "redime pelo mais alto". Nada neste lugar.
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Bebo o primeiro café do dia sobre o vale. Um denso nevoeiro progride sobre a vila. A chuva parou há pouco. Os sinos das igrejas marcam as nove. Sobra demasiado tempo ainda para nada.
Indignar-me é o meu signo diário
Calendário
Há nove anos, numa noite de chuva e muito frio, recolhi um gato, já adulto, que tinha sido abandonado. Mal disse "bichinho, bichinho" não se fez de rogado e saltou para o meu colo. Foi prontamente baptizado: Malick. O nosso anarquista. "Remember, remember the 5th November!"
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Não há já cães vadios pelas ruas. Há pouco cheguei a umas das janelas e foi a primeira coisa que me agitou o pensar. Na infância era vê-los pelas ruas à procura das sobras deitadas de alguma janela. E depois o rosnar ou a ganir em lutas pelo cio de uma cadela.
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O som do ribeiro há muito que não chegava à janela do meu quarto. Na encosta da Serra as barrocas estão agora visíveis tal a água que por elas corre. O vento continua forte e desmesurado.
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Acalentei durante anos o desejo de fumar o primeiro cigarro do dia num terraço sobre a cidade. A falta de pulmões à altura de tamanha empresa impede essa realização. Optei então pelo primeiro café. Só que me falta o terraço. Contento-me com a janela da cozinha sobre essa rua com nome de país sul-americano. Mais os comboios a horas certas.
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Acordei durante a noite com o som daquilo que pensei ser a chuva. Afinal era apenas o chuveiro do vizinho do lado. Há muito que dou conta que ao contrário de mim não canta enquanto toma banho. A intimidade às vezes é mesmo e só uma palavra.
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O gato deixou de aparecer nestes meus vulgares relatos. Até hoje não tive dele nenhuma reclamação.