Foi este...

Foi este
o país que nos
calhou
à beira
mal plantado:
terra de uvas onde só sobra bagaço
24-11-2016

E. M. Forster

     
      Mas não se atreveria. Não era próprio de uma dama. Porquê? Por que razão a maior parte das coisas grandes não eram próprias de uma dama? Uma vez Charlotte tinha-lhe explicado porquê. Não é que as mulheres fossem inferiores aos homens, mas eram diferentes. A sua missão era inspirar os outros a realizações em vez de elas próprias realizarem. Indirectamente, através do tacto e de um nome sem mácula, uma dama podia realizar muitas coisas. Mas se se lançava ela própria na refrega, primeiro seria censurada, depois desprezada e finalmente ignorada. Tinham-se escrito poemas para ilustrar este ponto.


em Um quarto com vista, tradução de Manuel Seabra, Lisboa: Público, colecção Mil Folhas, 2002, p. 43.

José Duarte Saraiva


Feno


A fuga a um destino entreaberto, as mãos presas no bronze que as moldou, insurrectas verdades por instinto — a paz, a força adivinhada nos espelhos, a folia cúpida dos fenos, quando em crianças brincávamos nus. em A Cratera dos Mitos, Lisboa: Europress, 1987, p. 31.

(...)


O aroma a café percorre a casa. Sirvo-me excepcionalmente de uma chávena que acompanha pão torrado com manteiga (outra excepção). O dia a esta hora é um mar azul de céu cheio de sol. Continua-se a ouvir o ribeiro. Um cão ladra. E uma voz chama por outra ao longe.


§


Ainda não passou a carrinha do pão. A sua buzina estridente não rasgou o ar.


§


Diz o poeta: "faltam os pássaros". Acrescento: faltas tu também. Dizer que sinto agora muito tudo isto é um eufemismo.

(...)

As nuvens deixam ver um pouco do azul do céu e nele o risco de um avião. E de repente o sol explode nas folhas das nogueiras.

§
Ao fundo o rio. Também a juventude.
§
um gato sobre um muro. Mede a distância que nos separa. Digo "não te preocupes que não te faço mal". E como se entendesse encosta a cabeça às patas da frente e fecha os olhos.

(...)

A tarde vai a meio. Apenas metade da vila com sol ainda. Um gato caminha levemente pelo terraço. Saberá ele que a morte também o espera? Ah! Como seria bom viver sem da morte conhecer o preço.

§
Ao longe as faias ardem nas suas cores de Outono.
§
um vento leve nas nogueiras aqui em frente. Uma nuvem cobre parte de São Lourenço. Inesperadamente o som de um F16 interrompe todo este bucolismo.

Calendário

 



(...)

O toque a finados ecoava há pouco pela vila. E eu passeava pelas suas ruas sem o frio habitual no rosto e sem a morrinha que ainda ontem nos visitou todo o dia. Não deixei que a morte se metesse nos meus pensamentos. Mas inevitavelmente.

§

Cruzei-me com um velho amigo de infância do meu Pai. Lamentou a falta de nascimentos e as mortes em demasia. Falou na decadência da vila a olhos vistos. Limitei-me a concordar pois dizer o contrário seria ou mentir ou ser cego.
§

Sei apenas que os teus braços são um lugar para mim seguro. E tu "a minha terra da alegria". Da qual nunca me quero despedir.

Calendário

 


Há alguns dias às voltas com este livro. Do autor apenas tinha lido "Amor de Perdição", por obrigação académica nos idos do secundário. Não gostei. Agora tento este "Vinte horas de liteira". Não posso dizer que está a ser uma leitura prazenteira, mas também não está a ser um sacrifício. A verdade é que sinto que Camilo Castelo Branco não é muito o meu estilo.

(...)


Durante anos desta mesma janela o imaginar de uma vida longe daqui. Onde muitos viam beleza e paz eu via sufoco e ansiedade. Nada neste lugar me liberta. Nada neste lugar me "redime pelo mais alto". Nada neste lugar.


§

Um dia ainda pela frente. O tempo parece não passar e ainda assim coloco o relógio no pulso. Hoje o sol. Ao menos isso.

§

Tratei dos gatos que continuam a aparecer no terraço de casa. Mal ouvem a porta surgem miando como se o mundo fosse terminar e disso me quisessem avisar. 

Calendário



 

(...)

 

O relógio da cozinha no seu tique-taque. Um carro que passa na rua. O aroma a café acabado de fazer. O estore do vizinho. Na rádio uma sonata de alguém.
§
O bucolismo nunca me interessou. Em certa medida vivi grande parte da minha vida rodeado pela sua ideia. Só que nunca me tinha dado conta. E quando dei: tive de me afastar.
§
Ontem na rua encontrei mais pessoas do que é habitual. Estranhei. Vim depois a saber que havia um funeral.

Calendário

 



(...)


Bebo o primeiro café do dia sobre o vale. Um denso nevoeiro progride sobre a vila. A chuva parou há pouco. Os sinos das igrejas marcam as nove. Sobra demasiado tempo ainda para nada.


§

Ao balcão a esta hora há quem beba imperiais traçadas com Martini. Ou um copo de vinho tinto. Ou um moscatel. Aventurei-me num descafeinado pois o coração não está para grandes conversas. Numa mesa ouço alguém dizer "o habitual!".

§

Da janela do café os mortos observam-me.

Calendário

 


Calendário



Há nove anos, numa noite de chuva e muito frio, recolhi um gato, já adulto, que tinha sido abandonado. Mal disse "bichinho, bichinho" não se fez de rogado e saltou para o meu colo. Foi prontamente baptizado: Malick. O nosso anarquista. "Remember, remember the 5th November!"

(...)

Não há já cães vadios pelas ruas. Há pouco cheguei a umas das janelas e foi a primeira coisa que me agitou o pensar. Na infância era vê-los pelas ruas à procura das sobras deitadas de alguma janela. E depois o rosnar ou a ganir em lutas pelo cio de uma cadela.

§
Há um vento forte que se faz sentir. Na outra noite acordei com a chuva forte no telhado. Ajeitei o corpo ao edredão e voltei a adormecer. Pela manhã ao acordar a mesma chuva forte no telhado. Como se o tempo não tivesse passado.
§
Na televisão há cowboys e índios. Em criança os índios eram os maus e os cowboys os bons. Hoje sei que na realidade seria o contrário. Envelhecer afinal tem algumas vantagens.

(...)

O som do ribeiro há muito que não chegava à janela do meu quarto. Na encosta da Serra as barrocas estão agora visíveis tal a água que por elas corre. O vento continua forte e desmesurado.

§
Na infância o ribeiro era lugar de brincadeiras. Havia uma pedra que enchíamos de sabão para nela melhor escorregar. O ribeiro era o nosso pequeno "aquaparque". Só mais tarde veio o rio.
§
quanto tempo não visito o Poço dos Moinhos? Há quanto tempo não mergulho na sua água cristalina e fria? Há quanto tempo não sou picado por um tábaro?

(...)


Acalentei durante anos o desejo de fumar o primeiro cigarro do dia num terraço sobre a cidade. A falta de pulmões à altura de tamanha empresa impede essa realização. Optei então pelo primeiro café. Só que me falta o terraço. Contento-me com a janela da cozinha sobre essa rua com nome de país sul-americano. Mais os comboios a horas certas.

§

Acordei durante a noite com o som daquilo que pensei ser a chuva. Afinal era apenas o chuveiro do vizinho do lado. Há muito que dou conta que ao contrário de mim não canta enquanto toma banho. A intimidade às vezes é mesmo e só uma palavra.

§

O gato deixou de aparecer nestes meus vulgares relatos. Até hoje não tive dele nenhuma reclamação.