Há no dia beleza...

 

para o Rui Almeida


Há no dia beleza
para cegar mil homens
e outros mil deixar
indiferentes à cegueira

que nos consome 
A merda é muita e certo
também o peso da canga
Ainda assim temos

mãos para limpar a ramela
que deixamos acumular
No fundo dá trabalho

a higiene diária de ser homem
por inteiro e aceitar o grito
que teimamos abafar

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A primeira que ouvi falar de Brian Eno foi enquanto produtor dos U2. Só mais tarde vim a saber que tinha integrado os Roxy Music e que era um músico de excelência. As suas paisagens sonoras acompanham-me há anos. Lembro-me, por exemplo, do primeiro álbum que dele adquiri: Thursday Afternoon (EG, 1985). Com Jon Hassell o processo foi completamente diferente. Um dia comprei Power Spot (ECM, 1986). Comprei o álbum apenas porque tinha o selo de garantia ECM (tenho uma pequena fixação com esta editora). Fiquei fascinado com o experimentalismo do álbum, bem com com os ambientes criados. Este Fourth World, Vol. 1: Possible Musics (EG, 1980), reúne estes dois grandes nomes numa simbiose perfeita. É considerado por muitos como uma marco musical, pois foi pioneiro na abordagem à designada "world music". As paisagens sonoras de Eno aliadas ao experimentalismo de Hassell conferem ao álbum um ecletismo que ainda hoje soa a novidade.

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Agora entendo porque se auto-intitulam "sindicalismo novo".

(...) envergonhar o Estado Português na receção de turistas com cartazes e/ou comunicados em várias línguas "Bem vindo ao país que tem milhões para indemnizações para amigos, palcos, PPP, banqueiros mas paga salários de miséria para quem cuida das suas crianças e/ou mas rouba tempo de serviço aos professores, etc).

18 de Março de 1871

 



A Comuna deixava de ser um Estado na medida em que lhe cabia reprimir não a maioria da população mas a minoria (os exploradores); tinha quebrado a máquina de Estado burguesa; em vez de uma força espacial para a repressão, entrou em cena a própria população. Tudo isto é um afastamento do Estado em sentido próprio.

V. I. Lénine, O Estado e a Revolução, sem referência a tradutor, Edições Avante!, 4ª edição, 2011, p. 75

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Vamos a factos:
1. Uma estrutura sindical começou, em Dezembro de 2022, uma "greve por tempo indeterminado";
2. O Ministério da Educação não revela os números de adesão a essa mesma greve, apesar das direcções escolares os comunicarem, à tutela, duas vezes por dia;
3. Apesar de não revelar os números, considera ter "legitimidade" e "justificação" para implementar serviços mínimos;
4. Serviços mínimos que não seriam necessários caso fossem revelados os números de adesão à "greve por tempo indeterminado";
Assim sendo, pergunto: a quem serve esta "greve por tempo indeterminado"?

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Sexta-feira há uma Greve Geral da Função Pública. Enquanto docente faço parte da Função Pública. A Greve Geral da Função Pública não está sujeita a serviços mínimos. Todavia, os docentes são privados do seu direito à greve, isto é, nas escolas deverão ser fixados serviços mínimos, de acordo com a DGEsTE:

Em resposta ao email, será de fixar serviços mínimos para PD e PND para a greve geral de sexta-feira. A decisão do colégio arbitral n.º 10 determina serviços mínimos para a globalidade do exercício do direito à greve.

Bastava uma estrutura sindical levantar a sua greve inconsequente (mas que tem originado graves consequências) e todos os docentes poderiam exercer de forma livre e ilimitado o seu direito à greve. Essa estrutura sindical opta por não levantar a sua greve inconsequente, como aliás já entregou novo pré-aviso de greve até final do mês. Isto tem um nome: irresponsabilidade.


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Há por aí aquilo que alguns designam de "novo sindicalismo". A verdade é que este "novo sindicalismo" é uma espécie de wokismo. Os wokes do sindicalismo não são muito diferentes dos wokes da religião, literatura, ou de outra coisa qualquer: andaram adormecidos para tudo, principalmente para a luta, e agora surgem como paladinos dessa mesma luta (que sempre ignoraram) e fervorosos entusiastas das greves por tempo indeterminado ao primeiro tempo, segundo tempo, último tempo ou quando der mais jeito. São, também, fervorosos defensores do apolítico e do apartidário. Os wokes do sindicalismo não assumem uma ideologia, excepto quando dizem "eu penso", "eu acho", "para mim era assim", "a minha solução é", e por aí em diante. São fãs do verbalismo, da gritaria, do alardear e são, principalmente, especialistas em duas  coisas: banalizar a greve (último recurso de todo o trabalhador) e esgotar a luta. A questão é que estes wokes do sindicalismo começam a ver que o seu "novo sindicalismo" deu para o torto e é pouco eficaz. As greves por tempo indeterminado, por exemplo, levaram ao decretar de serviços mínimos, o que coloca em causa o direito à greve. Sim, é o direito à greve que está em causa. E o que fazem os wokes do sindicalismo? Alguns desaparecem de cena. Outros remetem-se ao silêncio. Outros dizem mesmo que nunca defenderam tais coisas e que "os sindicatos são todos iguais!", "só deveria existir um sindicato", logo eles que acusam sempre tudo e todos de défice democrático. Os wokes do sindicalismo andaram com jerricans de gasolina a atear o fogo e agora escondem-nos no fundo da despensa. Assumir responsabilidades não é com eles, pois como todos nós sabemos: os wokes do sindicalismo estão do lado certo da História e sem eles a luta não existiria. Aliás! a luta, segundo eles, nunca existiu. 

(...)

 

No prédio há o silêncio das nove e meia às vezes interrompido ou pelo elevador ou pelos cães do andar de baixo. Passa agora um comboio. Ao longe o sol brilha nos prédios mais altos. Eis a prova de que quando o sol nasce não é para todos.

*

Não estava a contar com este chuvisco que me obriga a vestir novamente a gabardine. A verdade é que não me importo. 

*

Cortei-me a fazer a barba mas já escrevi sobre isso num outro lugar. 

V. I. Lénine

Somos pela república democrática como melhor forma de Estado para o proletariado sob o capitalismo, mas não temos o direito de esquecer que a escravatura assalariada é o destino do povo mesmo na república burguesa mais democrática. Mais ainda. Qualquer Estado é uma «força especial de repressão» da classe oprimida. Por isso, qualquer Estado não é livre nem do povo.

em O Estado e a Revolução, sem indicação de tradutor, Edições Avante!, 4ª edição, 2011, p. 27.

Indignar-me é o meu signo diário

 



"... que também nós sofremos..."

Em termos acumulados, a Sonae viu os lucros aumentarem 32,6%, ascendendo a 210 milhões de euros, e a faturação crescer 10,4%, para os 5.493 milhões de euros.

in Jornal de Negócios, 09-11-2022.

(...)


Não sei como conseguimos dormir à noite sabendo que há lugares que nunca iremos visitar.

*

O sobressalto sempre fez parte da minha vida. A serenidade foi algo que nunca me foi. Tento encontrar a calma nas coisas simples. Um copo de vinho mais um pedaço de pão e azeite onde o molhar. E mesmo assim o sobressalto.

*

Tenho a vantagem de usar óculos de sol. Ainda assim os meus olhos rejeitam a luz do dia como o diabo rejeita a cruz. 

A avidez dos lobisomens | António Santos

in Avante!, 09-03-2023

Em O Ca­pital, es­crito no lon­gínquo sé­culo XIX, Marx con­de­nava assim o ape­tite do ca­pi­ta­lismo pelo tra­balho in­fantil: «no seu im­pulso des­me­di­da­mente cego, na sua avidez de lo­bi­somem por so­bre­tra­balho, o ca­pital der­ruba as bar­reiras má­ximas do dia de tra­balho, não só as mo­rais mas também as pu­ra­mente fí­sicas. Ele usurpa o tempo para cres­ci­mento, de­sen­vol­vi­mento e sau­dável con­ser­vação do corpo. Rouba o tempo re­que­rido para o con­sumo de ar livre e luz solar.» Dois sé­culos mais tarde, o tra­balho in­fantil re­gressa ao país ca­pi­ta­lista mais de­sen­vol­vido do mundo como uma do­ença cró­nica, e de nas­cença.
Se­gundo o De­par­ta­mento do Tra­balho da Casa Branca, em 2022 o nú­mero de cri­anças a tra­ba­lhar ile­gal­mente au­mentou 37 por cento. Se olharmos para a úl­tima dé­cada, esse nú­mero ul­tra­passa os 140 por cento. No final de Fe­ve­reiro, o New York Times dava à es­tampa uma peça in­ti­tu­lada «So­zi­nhas e Ex­plo­radas, Cri­anças Mi­grantes em Tra­ba­lhos Bru­tais nos EUA», que de­nun­ciava a es­cala ater­ra­dora do crime contra as cri­anças: cen­tenas de mi­lhares delas, muitas com menos de 12 anos, sem fa­mília, a tra­ba­lhar como adultos até 14 horas por dia, im­pe­didas de brincar, de aprender, de serem cri­anças, para en­gor­darem as es­ta­tís­ticas do tra­balho in­fantil e os lu­cros dos lo­bi­so­mens que detêm os meios de pro­dução.
De costa a costa, uma maré le­gis­la­tiva per­corre os con­gressos es­ta­duais dos EUA, eli­mi­nando as leis que pro­te­giam as cri­anças do tra­balho in­fantil. No Wis­consin subs­ti­tuiu-se «tra­balho in­fantil» por «tra­balho feito por me­nores»; em Nova Hampshire, per­mitiu-se que cri­anças de 14 anos sirvam be­bidas al­coó­licas e tra­ba­lhem até 35 horas por se­mana; no Se­nado do Iowa, no pas­sado dia 1, foi apro­vado na ge­ne­ra­li­dade o pro­jecto de lei 167 que per­mite que cri­anças a partir dos 14 anos possam de­sem­pe­nhar tra­ba­lhos pe­ri­gosos, desde que como «apren­dizes». Entre as in­dús­trias abertas à apren­di­zagem das cri­anças do Iowa, en­con­tram-se «ma­ta­douros, pro­ces­sa­mento de carne, minas, serras cir­cu­lares, de­mo­li­ções» etc. Como se não bas­tasse, o SF167 «isenta os ne­gó­cios de quais­quer res­pon­sa­bi­li­dades ju­di­ciais caso o aprendiz adoeça, sofra um aci­dente ou morra de­vido à ne­gli­gência do em­pre­gador». De­fen­dendo o pro­jecto de lei, Jason Schultz, do Par­tido Re­pu­bli­cano, ga­rantiu que a nova le­gis­lação «vai criar uma ge­ração de lí­deres ha­bi­li­dosos».
Da in­dús­tria au­to­móvel à in­dús­tria ali­mentar, pas­sando pela cons­trução e pela ho­te­laria, o tra­balho in­fantil deixou de ser ex­cepção nos EUA. Já não é uma me­mória nem uma visão do «ter­ceiro mundo. Já não se es­conde. É om­ni­pre­sente e torna-se legal. Na sua cró­nica se­manal no Mo­ville Re­cord, Schulz sin­te­ti­zava assim a causa do tra­balho in­fantil: «se o fu­turo per­tence às cri­anças não lhes po­demos negar o di­reito de cons­truí-lo no pre­sente. Não nos po­demos es­quecer que este mundo é muito mais com­pe­ti­tivo do que há 50 anos». Pois é, mas não mais do que há 200, di­ríamos nós, que sa­bemos que outro mundo tem mesmo de ser pos­sível.

Monet

 



San Giorgio Maggiore at Dusk
1908

(...)


Gostaria de vos dizer que os dias correm como cavalos loucos. Ou será selvagens? Não recordo agora. Mas os dias apenas se arrastam e cumprem o calendário. Nada de novo. Nada de interessante para dizer. E no entanto aqui estou de novo neste não-lugar.

*

Acordei com um peso nos olhos. A luz que entra pela janela não ajuda. Olho dia e vejo que acordou como eu: nublado.

*

Há tempo mudei de óculos. Aconselharam-me "lentes progressivas". Não noto diferença alguma pois o mundo continua reaccionário. Daí talvez as dores de cabeça.

Luz e Tempo [6]





The camera is an instrument that teaches people how to see without a camera.
— Dorothea Lange

Luz e Tempo [5]

 




There is one thing the photograph must contain, the humanity of the moment. — Robert Frank

Luz e Tempo [4]

 





All photographs are memento mori. To take a photograph is to participate in another person’s (or thing’s) mortality, vulnerability, mutability. Precisely by slicing out this moment and freezing it, all photographs testify to time’s relentless melt.
 
 Susan Sontag

Luz e Tempo [3]

 





What the Photograph reproduces to infinity has occurred only once: the Photograph mechanically repeats what could never be repeated existentially. — Roland Barthes

Luz e Tempo [2]




To me, photography is an art of observation. It’s about finding something interesting in an ordinary place… I’ve found it has little to do with the things you see and everything to do with the way you see them.  Elliott Erwitt

Lí por aí


A participação no mundial de futebol do Catar legitima a corrupção, a violação de direitos humanos e a escravatura. É uma tripla que demonstra de modo claro e inequívoco a hipocrisia inerente a diferentes instituições com responsabilidades desportivas e políticas. A mensagem é: o dinheiro relativiza tudo. Portanto, esqueçamos quanto havíamos aprendido sobre ética, moral e axiologia. As tão apregoadas crises de valores já nada têm que ver com conflitos geracionais, são um produto da sobrevalorização do dinheiro e do capital. Face ao valor do dinheiro, a vida humana, o amor, a liberdade, nada valem hoje para quem está no poder e com o poder. É este o significado derradeiro da mensagem enviada por todos quantos desvalorizam e desprezam os direitos humanos, sejam eles quem forem. Menosprezar, por causa de um espectáculo desportivo, a escravatura de milhares de trabalhadores que pereceram em condições miseráveis a construir luxuosos estádios de futebol, não tem apenas um significado simbólico. É ciência pura. O mal está legitimado. Vladimir Putin está legitimado. Tudo quanto julgávamos repugnante e censurável está legitimado. Não há diferença nenhuma entre o mundial do Catar e o Coliseu de Roma. Acabámos de regredir até esses tempos, protegidos pela higiene do ar condicionado com que se disfarçam uma absoluta insensibilidade social e uma anestesiante indolência moral.

Henrique Manuel Bento Fialho
em Antologia do Esquecimento