Falar de crise da educação é
referirmo-nos, a montante dos sintomas que a denunciam, ao reconhecimento da
inadequação dos princípios orientadores da acção educativa. A crise corresponde
ao momento no qual os preconceitos desaparecem e ressurgem as questões para as
quais os mesmos constituíam respostas. Sob esta perspectiva, pode tratar-se de
um momento particularmente fértil, se a salvo das ideias feitas e do pathos da novidade. Foi no século XX
que, no que diz respeito à educação, se produziram as consequências mais
gravosas destes dois factores, precisamente na medida em que abriram caminho
para as teorias modernas da educação, relativamente às quais Hannah Arendt
destaca três ideias basilares, a saber: (i) existe um mundo próprio das
crianças, bem como uma sociedade formada por elas; enquanto seres autónomos que
são, devemos deixar que se autogovernem. Consequência: do ponto de vista do
adulto, este ficou desamparado face à criança tomada individualmente,
restando-lhe permitir que esta faça aquilo que lhe agradar e impedir que
aconteça o pior; do ponto de vista da criança, liberta que ficou da autoridade
dos adultos, viu-se submetida a uma autoridade mais tirânica —a da maioria. Tomada
isoladamente, a criança tem escassas hipóteses de se revoltar ou de fazer algo
por iniciativa própria; deixou de estar na situação de uma luta desigual com
alguém que detém superioridade absoluta sobre ela— situação na qual podia
contar com a solidariedade dos seus pares —, passando à situação de ser uma
minoria de um só face à absoluta maioria de todos os outros; (ii) a ideia de
que é professor aquele que é capaz de ensinar seja o for. Consequência: porque
a sua formação é em ensino e não em conteúdos particulares, muitas vezes pouco
mais sabe sobre o que ensina do que os seus alunos; (iii) a ideia, considerada
a mais perniciosa de todas, respeitante à substituição do aprender pelo fazer,
porquanto se considera, no âmbito de uma concepção pragmatista, que só
conhecemos e compreendemos aquilo que fazemos por nós mesmos. Consequência:
tendo em conta o pressuposto de que o jogo é o modo mais apropriado de a
criança se introduzir no mundo, porque o mais espontâneo e característico, há
que suprimir tanto quanto possível a diferença entre trabalho e jogo, em
benefício do último, sem tampouco inculcar gradualmente o hábito de trabalhar
ao invés de brincar, situação característica da idade adulta.
em A Democracia nos Limites da Escola. Ou da Disjunção entre Educação e
Política em Hannah Arendt, Covilhã: Universidade da Beira Interior, Colecção
Artigos LusoSofia, 2009, pp. 7-8.
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