Fialho de Almeida


Caracteres da Literatura Contemporânea


Hoje capta-se a aura condensando tudo em parágrafos curtos, dizendo tudo em linguagem inaudita, louco-lúcida, e incisiva, e perturbante entrando na carne em epilepsias de som, de emotividade mordente, de vertiginosidade paradoxal e maquiavélica. Uma linha de prosa moderna deve conter o sumo de cinquenta ou sessenta páginas antigas: cada imagem deve ser um mundo, e cada nótula de observação uma psicologia humana fumegante. Escritor que não dê no papel esta transmissibilidade de acção vertiginosa, que não esteja disposto a dar pedaços da vida em cada volume de 3 fr. 50, contenha ele embora na omnipotente fantasia um cosmos prodigioso, seja um revelador sinistro como Dostoievsky ou Shakespeare, ninguém o escutará se for moroso, e se não possuir modo de visionar o assunto, essa espécie de delírio agitante dos génios alcoólicos, tão bem iniciado para a arte em certas alucinações de Poe, Henri Heine, e Villiers de l’Isle-Adam.
Ao mesmo tempo a tensão cerebral imposta aos homens de letras por esta literatura exigentíssima, nem dá masculinidade às criações, nem tão-pouco assenta o público numa permanência de escola duradoura. Com o ser fisiologicamente uma expressão vital da época, ela ingurgita-se de todas as desfalências e saburras contemporâneas: tem o sentimento de mau-estar, que é o mal de viver, com zargunchadas dolorosas que a levam ao pessimismo directamente: tem a acuidade analítica, sem saúde moral, característica das agrupações que sofrem da vontade, resultado da convicção da anomalia interior e do destino falho: tem a vaidade suprema, que exagera tudo, e faz de mil autobiografias ridículas, constantemente assuntos de epopeia: tem o egoísmo mesquinho, o predomínio dos impulsos grosseiros e dos exasperos animais de extrema crápula, tem o estilo agitado, a imagem fúnebre, o delírio das grandezas no modo de espargir a cor e instrumentar a frase pictural — e a insociabilidade, a cólera impulsiva, a obsessão da palavra técnica e preciosa — finalmente, todos os característicos de uma sociedade liquidante, e duma literatura escrita por doidos, devassos tabéticos, e facínoras das galés.
Ora como os escritores não podem deixar de ser a quintessência dos détraquements doentios da sociedade extravagante em que nasceram, resulta que a obra deles reflectirá em amplificado as diferentes modalidades de desequilíbrio que fixei, e essa amplificação descambará ainda na deformidade, se aos desarranjos que poderemos chamar profissionais, acrescentarmos os resultantes da necessidade de dinheiro, que os força a produzir certo por hora, a produzir à bruta, e a manter o seu rang à custa de uma originalidade buscada ao poder de excitações. De exagero em exagero, assim a moderna literatura foi debochando os paladares, desviando o ideal do seu límpido voo para as regiões clássicas do belo, desorientando as sensações, forçando a nota das catástrofes, explorando o caso raro, arvorando em assunto de arte a anomalia; e falseando paralelamente a isto o destino educador e sanitariamente intelectual do seu papel, cedendo o passo os caprichos da turba, e aceitando por fome a imposição dos gostos grosseiros, e dos instintos desregrados da canalha! A ponto, que chegamos ao seguinte: a literatura apeada do pontificado mental das sociedades, industrializadas a bon marché, e os seus cultores reduzidos a escriturários e serventes do público, que lhes dita revoluções literárias ao semestre, por um figurino grotesco, paralelo ao dos chapeleiros e alfaiates. Finda a estação, a moda acaba, e sucede-lhe outra atinente às inconstâncias do clima, às alturas do sol, e variabilidade da pressão. Neste corropio os homens de letras, passados a simples entretenedores de ociosidades doentias, a fabricantes de blagues para matar o tédio, os homens de letras vão rebentando como esse Maupassant, em meia dúzia de anos a galope atrás do favor de gentes fúteis e maníacas. Alguns cheios de talento, alguns febris de génio, mas sem tempo material para produzir obras pujantes, atolam-se como malditos na banalidade da produção a vapor, da produção espontânea sem ranhuras, para fazer com trezentos e sessenta artigos por ano, as setecentas libras necessárias ao prego e à vida factícia dos restaurantes e dos cafés!


em Os Gatos, selecção e introdução por M. Antónia Carmona Mourão e M. Fernanda Pereira Nunes, Lisboa: Ulisseia, colecção Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1986, pp. 191-193.

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