Há neste mundo duas ciências. Uma, que a humanidade vai fazendo e
desfazendo cada dia, e que consta de uma teorias hipotéticas firmadas em factos
imaginários, massa confusa que a mesma humanidade conduz às costas sem saber o
que leva. Outra que é a obra pensada e criada pelos eleitos de Deus, pelos
génios raros que de tempos a tempos vêm, ninguém sabe donde, a realizar as
grandes descobertas e os grandes inventos, de que o homem se aproveita, sem os
agradecer a quem lhos dá.
A primeira adula a vaidade do vulgo, espoja-se nas academias, faz
diligências para perpetuar-se nos livros que a traça há-de-roer, e todos os
dias vai renovando as doutrinas efémeras de que se compõe, substituindo cada
hipótese, que se fez velha, por um novo erro, que só dá, como produto real, uma
casaca nova para quem o inventa e que dura apenas o tempo que a mesma casaca
leva a romper-se.
A segunda cresce sempre e indefinidamente, nada perde do que já possui,
ressuma contínuos benefícios, mata a fome de uns, enxuga as lágrimas de outros,
vai levantando arco sobre arco na ponte que há-de unir o homem a Deus, e tem
uma história longa e eterna, da qual cada capítulo tem por título um nome
célebre e imortal.
A primeira dá, aos que a geram, a celebridade enquanto vivem e o
esquecimento no dia em que morrem, ainda mesmo que as inutilidades, que
produzem, logrem durar através dos tempos. Tanto sabemos nós hoje quem em
épocas remotíssimas edificou as pirâmides egípcias como sabemos quem, já no fim
do século passado, inventou os chapéus redondos.
A segunda ganha, para os que a criam, o escárnio dos contemporâneos e a
glória póstuma. As suas obras ficam para sempre, e com as suas obras ficam os
seus nomes, desde Noé, que nos princípios do Mundo fabricou o vinho às
gargalhadas da família, até Franklin, que inventou o pára-raios, enquanto os
seus patrícios julgavam que ele andava apenas divertindo-se a lançar papagaios
ao vento.
Os filhos de Noé descompuseram o seu pai, e a academia de Londres censurou
a banalidade de Franklin; e contudo nós ainda hoje bebemos vinho e abrigamo-nos
seguros com o pára-raios.
O autor das pirâmides foi provavelmente muito celebrado, e o fabricante dos
chapéus provavelmente condecorado; e todavia as pirâmides só vivem hoje para
aninhar serpentes e os chapéus redondos para nos darem dores de cabeça.
Há, pois, duas ciências: uma, que é a verdade que sobrevive; outra, que é o
erro que morre; uma, que é criada pelo génio; outra, que é produzida pelo
orgulho; uma, que é o sopro de Deus; outra, que é o arroto do homem; uma, que é
um bolor de podridão estendido pela superfície da terra; outra, que é a
vegetação virente a que chega a cultura pavonesa.
Da primeira ciência riem-se os parvónios, e não a querem para si; a segunda
estimam-na, apreciam-na e guiam-se por ela.
E por que será isto?
É pelo que estou farto de repetir. É por uma razão de coerência. É porque
em ciência, como em tudo o mais, a Parvónia é povo de bom senso.
em A Parvónia –
recordações de viagem, Lisboa: Frenesi (conforme as edições de 1868 e 1894),
2007, pp. 152-154.
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