Porque não abrimos uma falência brusca e
comerciamos ainda com a vida num comércio de papéis. E é só a um instante
lúcido e fugidio, que o papel se nos revela na sua inutilidade de papel. Findou
em nós o trabalho das gerações e os nossos filhos não têm pais. Calaram-se em
nós as últimas palavras de amor e os nossos filhos só conhecem a saturação do
prazer. Acabou em nós todas as religiões e todas as anti-religiões, que eram
religiões do avesso, e a nossa herança a transmitir é apenas o desespero ou o
silêncio. Turbou-se em nós a certeza da justiça e a instituição que legámos é
apenas a do cárcere, com o preso e o carcereiro em papéis alternados e permutáveis.
Perdeu-se em nós a segurança do saber, e a tranquilidade dos sistemas oscilou
em inquietação. Quebrou-se a firmeza do afirmar, e dela regressámos para antes
de ser firme. Corroeu-se em nós a ideia de beleza e o que amealhámos para
herança foi só quanto muito a beleza do horrível.
E no entanto, na humildade do
desastre, uma flor nova irrompe — nova. Como a primeira flor ao vento sobre a
face da Terra. Porque nós estamos vivos e toda a grandeza assim se nos mantém.
Estamos vivos, sabemo-lo. O facho de luz que de nós se projecta, a nós regressa
e ilumina — ilumina o que não desejamos destruir. Falo no centro da noite, é a
hora que me coube, a minha hora.
em Invocação ao meu corpo, Venda Nova: Bertrand Editora, 3ª edição,
1994, pp. 17-18.
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