Raul Brandão


E o pior é que este sonho é afinal o meu sonho e o teu sonho. Ninguém o confessa senão a si próprio. O nosso sonho é não morrer. Quando a gente se esquece um bocado a vida já tem passado. E quando a vida tem já passado é que nos agarramos com mais saudades à vida. A resignação custa muitas horas doridas em que ficamos alheados e suspensos. A morte… A morte é inevitável? — pergunto baixinho. E como a morte é inevitável, como tenho por força me resignar, como não lhe posso fugir, para não perder tudo, criei outra vida. E afinal quem sabe se este sonho que a humanidade traz consigo desde que pôs o pé no mundo não é o maior de todos os sonhos e o único problema fundamental?
A verdade é que teima. Não nos larga a vida e levamo-lo escondido para a cova. A verdade é que foi sempre a nossa maior aspiração, e que, como todos os sonhos, há-de acabar por se converter em realidade. Temos construído o universo assim, podemos construí-lo de outro modo. Falta talvez um passo… A vida eterna admitimo-la quando não nos podemos manter nesta vida; mas, no fundo, o que nós queremos é este mesmo sol, esta pobreza, esta dor, estas ilusões moídas e remoídas. Deixem-nos a vida que aceitamos tudo. Aqui há, portanto, um erro primário. Protestas do fundo do teu ser: a morte é absurda. É preciso cortar um nó que não existe. O mais difícil é passar do império do possível para o império do impossível. É talvez uma questão de vontade. A vida é um acto de fé de todos os instantes. Arredemos de vez este suor frio. Não importa se é da uniformidade da vida ou do medo da morte que me vem esta ânsia. Sei que acordo e grito: – Eu não vivi! eu não vivi! E cada vez o meu protesto ascende mais alto. Quero tornar a viver a mesma vida aborrecida e inútil, quero recomeçar a desgraça.

em Húmus, conforme a 1ª edição (1917), Lisboa: Frenesi, 2000, pp. 35-36

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