Noite. Chego ao quarto. O riso das duas estudantes invade o apartamento. Falam à distância com alguém do outro lado do oceano. No outro quarto: silêncio. Desfaço a mala. Coloco no frigorífico o resto do almoço. Dispo a roupa molhada. À saída do metro uma chuva fina e persistente. Os risos, as gargalhadas continuam. Tudo isto contrasta com a alameda deserta, ou com as caras de Domingo à noite que encontrei no comboio. Não havia uma única pessoa com uma cara alegre. E mesmo aqueles que falavam ao telemóvel faziam-no com um tom irritado. À saída tive a companhia de mais três pessoas. Todas carregavam, como eu, malas. Pensei: "devem ser professores como eu. também devem ir para quartos tristes com marquise pois aqui tudo tem marquise". E talvez sejam outra coisa qualquer. Talvez estivessem a chegar de uma viagem a um lugar paradisíaco. Talvez estivessem a chegar de um fim-de-semana romântico com alguém e esse alguém seguiu para o outro lado da cidade. Mas a verdade é que tinham caras cansadas como todas as outras que vi no metro. Caras cansadas. Cada vez as vejo mais. Começando pela minha, todos os dias frente ao espelho de manhã. Às vezes penso: "como é possível fazermos todos os dias a mesma coisa". Sinceramente, não sei como é que o conseguimos. Não sei como é que aguentamos a morrinha diária de estarmos vivos, ou como é que aguentamos, tantas vezes, as caras uns dos outros. Não sei como é que conseguimos, tendo como certo que seremos um dia: pasto para vermes. É a única e verdadeira certeza. E persistimos. Sinceramente, não sei como aguentamos.
7 comentários:
Para já: BOM DIA:))
Aguentamos por esperança, apenas por ela e com ela, que a vida desesperançada não se aguenta.
É certo, seremos pasto de vermes. Todos nós. Mas não acha um bocadinho palerma, enquanto ainda não o somos, enquanto dura esta maravilha que é ver suceder as estações, estarmo-nos a lamuriar acerca de uma coisa que é certa e inaugura possivelmente a eterna época de não ser?! E depois queixa-se do quotidiano como se ele fosse um martírio... Não pensa nunca que é a forma mais rápida de perder a curiosidade interessante e interessada que é viver?!
Com todas as amarguras que a vida tem - e tem muitas - o quotidiano é todos os dias novo, dependendo dos olhos que o vêem. Mais, mesmo a repetição pode ser uma benção.
Se quiser umas lentes como as minhas...talvez baste gostar da vida. Porque em tudo há a beleza de estar vivo e haver sangue a correr nas veias. E o cheiro do café matinal. E respirar sem dar conta. E a chuva que bate no vidro da janela e nós ao quente de um lugar que temos não importa onde. E podermos pensar. E haver o imaginário onde soltar os cavalos e pô-los a pasto.
Nota 1: na terceira frase do texto há um erro de concordância sujeito predicado.
Nota 2: Nem todos os professores têm a sorte de ter um quarto ou uma casa com marquise. É um felizardo. Há quem não tenha emprego. E mais. Como bem sabe.
Cara Bea:
Obrigado pelas sua Nota 1.
Em relação à Nota 2: o mal dos outros nunca me serviu de consolo, nem nunca serviu para mitigar o meu desconsolo.
Volte sempre.
Cumprimentos
Lá está.
Como nos versos de Pavese:
"Ao menos pudéssemos partir,
rebentar de fome em liberdade, dizer não
a uma vida que utiliza o amor e a piedade,
a família, o bocado de terra, para nos atar as mãos."
Cara Cuca, a Pirata:
não sou tão "exagerado" como Pavese. Mas é mais ou menos isso, sim.
Volte sempre.
Cumprimentos
Ora bem. O mal dos outros não é consolo. Concordo. Mas é a certeza de que, talvez nem tanto por valor próprio (longe de mim dizer que não possa tê-lo), mas por um acaso da vida, não está no fim da linha. E, nesse sentido, tem obrigação de lutar mais e melhor. Porque, "a quem muito foi dado muito será pedido". Se não é religioso a afirmação conserva o valor. Vivemos neste tempo e não noutro, nestas condições específicas. E, ou retiramos o que pudermos de bom sem magoar os outros, ou carpimos as mágoas. Escolha nossa. Também podemos alternar, que é aliás o nosso traço mais comum; Sísifo empurra a pedra mas descansa - para bem e para mal - quando e enquanto ela desce e ele mesmo a vem buscar à base. O resto são histórias da carochinha.
E agora desculpe mas tenho de ir para a marquise passar a ferro. Fique bem.
Cara Bea:
não sou religioso. Assim: a afirmação não tem, para mim, qualquer valor. Embora entenda para onde ela vai. Mas é um caminho que há muito optei por não fazer. E ficou resolvido mais uma questão ou problema.
A escolha é nossa. Sim, concordo. Quanto a Sísifo: empurra mas descansa, para toda a eternidade.
Não acredito em histórias da carochinha. Mesmo quando me contam uma.
Eu acabei agora de estender a roupa: na marquise.
Volte sempre.
Manuel,
(não resisto em comentar)
Ainda hoje de manhã uma desconhecida irritada-sorridente (esta característica intrínseca ao aguenta aguenta) disse-me "lá vamos nós. Temos que pensar que há quem esteja pior, de cama, deprimido e sem emprego"
Repito as tuas palavras como a resposta que não lhe dei "o mal dos outros não me serve de consolo"
No entanto o que me serve de consolo, como optimista pestilenta, é a comparação com a minha própria experiência e vivências passadas. Há sempre esse nível de comparação, como aqui nas tuas palavras aparece a "adolescência livre e feliz na Serra" em comparação com "o cinzento dos dias d'hoje e o arrastar sem sentido, ou com o fim do pasto dos vermes"
Deixo (sem ter sido solicitado, no entanto encarando isto como espaço livre de discussão e partilha) a minha perspectiva sobre este caminho que vamos percorrendo por vezes sem grande ânimo, a arrastar com pés no pavimento encardido da cidade. O sentido talvez esteja no que se vive no entretanto (entre o desânimo e a castração), o que dá sentido é existir na criação, na partilha com os que nos são "algo", na presença e no resistir. E isso é de valor, com ou sem sorriso a reflectir ao espelho, o continuar sem vergar a espinha.
Cumprimentos,
Inês G.
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