Um poema de Leonor de Almeida


Carta

Por mais que me asfixies de sombra
não impedirás que eu encontre a custódia
onde o meu amor entesourou divindades
nem que as tuas impressões digitais
dancem no meu ar como poeira de abelhas
Por mais que te aumentes de silêncio
não conseguirás calar a tua voz
que ceifa num clarão a seara dos meus desejos

Podes entrançar cordas de distância no rumo decidido
que as nossas vidas terão as mesmas fronteiras
e registado na eternidade ficará o nosso abraço incomum

Se foste meu mestre
eu ensinei-te uma linguagem sem símbolos e sem intérpretes
Se foste meu deus
eu criei-te um universo e um infinito que te batem no pulso

Se teu riso com espadas de carne
punha meu corpo tenso com volutas de êxtase
o meu riso com sirenes de sangue
cobria-te de polpas frescas e saciava-te de dia

Podes multiplicar teus sonhos como hipóteses
que a realidade é eu ser gémea da tua realidade
E se não venço a dor de me saber póstuma em ti
lanço lavas astrais na minha caravela
que sulcará para sempre a tua água inaugural!



em Terceira Asa (1960), retirado Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (org. Maria Alberta Menéres e E.M. de Melo e Castro), 2ª edição revista, actualizada e com uma nova introdução, Lisboa: Livraria Morais Editora, Colecção Círculo de Poesia, 1961, p. 23.