Não sei que memórias e que pensamentos habitam toda
a noite nos nossos sonhos. Não me atrevo a perguntar por essa informação, uma
vez que, também eu, preferia ser uma optimista. Mas por vezes imagino que pelo
menos durante a noite pensamos sobre o nosso pai ou lembramo-nos dos poemas que
amámos outrora. Até poderia compreender como é que os nossos amigos da Costa
Oeste, durante o toque de recolhimento, podiam ter noções curiosas tais como
acreditar que não éramos os únicos “cidadãos prospectivos” mas “inimigos
alienígenas” reais. À luz do dia, com certeza, tornávamo-nos tecnicamente
apenas inimigos alienígenas – todos os refugiados sabem disso. Mas quando
razões técnicas previnem-vos de sair de casa durantes as horas negras,
certamente que não é fácil evitar algumas especulações negras sobre a relação
entre técnica e realidade.
Não. Há algo de errado com o optimismo. Há aqueles
estranhos optimistas entre nós que, tendo feito vários discursos optimistas,
vão para casa e ligam o gás ou dão uso a um arranha-céus de um modo um pouco
inesperado. Parecem provar que a nossa proclamada animação é baseada numa
perigosa disposição para morte. Ao mencionar a convicção de que a vida é o bem
maior e a morte a maior consternação, tornamo-nos testemunhas e vítimas de
terrores piores que a morte – sem termos sido capazes de descobrir um ideal
maior que a vida. Assim, embora a morte perca o seu horror para nós, não nos
tornamos nem dispostos nem capazes de arriscar a nossa vida por uma causa. Em
vez de combater – ou pensar sobre como ser capaz de resistir – os refugiados
habituaram-se a desejar a morte a amigos ou familiares; se alguém morre,
imaginamos animadamente todos os problemas de que foram salvos. Finalmente
muitos de nós acabam por desejar que, também nós, poderíamos ser salvos de
alguns problemas e agimos em conformidade.
em Nós os refugiados,
tradução de Ricardo Santos, Covilhã: LusoSofia Press, colecção Textos Clássicos de Filosofia, Universidade
da Beira Interior, 2013, pp. 9-10.
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