Um poema de Fernando Esteves Pinto
1972 - Um dia magoado
Este mundo é uma marmita
onde a vida se pega ao fundo.
Ninguém me disse que seria fácil
carregar com os esqueletos purulentos
e sentir na cara o ar doente,
as fungadelas de gozo que me assobiam aos ouvidos.
Se sou pura para tanto esterco,
se mesmo por baixo, em febre e lixada de dores,
o meu corpo é considerado de elevado valor,
porquê depois receber em cuspo e merda
por um serviço que todos sabem de falso pudor?
Assim vou acabar por perceber
que a minha mágoa e toda a amargura
é como um leite que ferve e já vem azedo.
em O tempo que falta, Coimbra: Temas Originais, 1ª edição, 2010, p.21.