Devo começar
este texto com um ponto prévio: a) The Cure são uma das bandas mais importantes
da minha vida, fazendo parte da minha “Santíssima Trindade Musical” (ao lado de
Joy Division e Bauhaus) e, verdade seja dita, não me consigo imaginar sem eles
no meu percurso de vida; b) ainda me lembro do dia em que na televisão ouvi
“Just like heaven” e depois descobri que o meu primo Zé-Tó tinha o álbum duplo
“Kiss me, Kiss me, Kiss me” (1987), tendo logo pedido para o gravar numa cassete
de noventa minutos Sony UX-S (tinha há pouco tempo recebido uma Telefunken com
gira-discos e dois decks de cassetes, que substituiu o velhinho leitor de
cassetes Sanyo); c) tenho todos os álbuns de The Cure até “Wish” (1992), não
tendo comprado, nem ouvido na íntegra (o que é importante para aquilo que aqui
vão ler), mais nenhum álbum da banda, desde “Wild Mood Swings” (1996) até “4:13
Dream” (2008); d) todavia, ouvi uma ou outra música desses álbuns, de onde
concluí algo: Porl Thompson, guitarra, e Boris Williams, bateria, faziam muita
falta; e) assim, não irão aqui ler que “Songs of a Lost World” (2024) é o
melhor álbum de The Cure dos últimos 32 anos.
Foi há muito que a banda britânica traçou o seu caminho. Ao contrário de outros seus contemporâneos, e segundo Mark Fisher, os The Cure permaneceram fiéis ao imperativo modernista do pós-punk (“novelty or nothing”), procurando “a sound that was ethereal rather than earthy, artificial rather than visceral.”. Esta afirmação de Fisher, apesar de parecer, não é um elogio (1), mas encerra em si a principal característica que pode ser encontrada, em toda a sua força e esplendor, no último trabalho da banda britânica.
Para além do título (que nos remete para uma espécie de fim dos tempos), este último álbum de The Cure está envolto numa espécie de espectralidade, já que são espectros, fantasmas de um outro tempo (que tanto pode ser passado como futuro) aquilo que podemos encontrar na sonoridade, mas também nas letras de Robert Smith, que remetem para os álbuns que constituem a trilogia da banda (“Seventeen Seconds”, “Faith”, “Pornography”): “Hopes and dreams are gone/the end of every song” (“Alone”); “I know, I know/That my world has grown old/And nothing is forever” (“And Nothing is Forever”); “Down, down, down, yeah, I'm pretty much done/Staring down the barrel of the same warm gun” (“Drone:Nodrone”); “Hear the bells beyond the sea/It's almost too late/Shadows growing closer now/And there is nowhere left to hide” (“I Can Never Say Goodbye”).
Um dado curioso
sobre “Songs of a Lost World” é a epígrafe de John Keats que encontramos no
“booklet” do CD (sou “retro” e ainda não aderi a essa modernice chamada
“vinil”): “and when I feel, fair creature of na
hour,/that I shall never look upon thee more/never have relish in the faery
power of unrefleeting love/then on the shore of the wide world I stand
alone,/and think til love and fame to nothingness do sink”: e que vem reforçar a ideia de que este poderá ser o último
álbum de estúdio da banda liderada por Robert Smith. A epígrafe dá o mote a todo o álbum, quer falemos de temas (amor, angústia
existencial, morte) ou, atrevo-me a dizer, “paisagem sonora”. Sim, paisagens
sonoras que nos remetem para outros lugares, mas também para outros álbuns da banda:
“Pornography” (1982), “Kiss me, Kiss me, Kiss me” (1987), “Desintegration”
(1989), “Wish” (1992). Ter referido estes álbuns não é um acaso. Neste último
trabalho da banda britânica podemos encontrar, nos 8 temas que compõem o álbum,
o ritmo mecanizado, marcial e ligeiramente industrial da bateria (muito vincado
em “Pornography”); a envolvência das guitarras (o substituto de Porl Thompson
talvez tenha sido encontrado para, aliado à técnica de Robert Smith [muito menosprezado enquanto
guitarrista], levar a banda para outros patamares sónicos), que podemos
encontrar em “Kiss me, Kiss me, Kiss me”; o ambiente etéreo e muito “dream pop”
de “Desintegration”; a presença constante do piano e o crescendo progressivo,
que podemos encontrar, por exemplo, num dos melhores temas de “Wish”: “From the
Edge of the Deep Green Sea”.
“Songs of a Lost World” vem
confirmar duas coisas: a voz de Robert Smith continua praticamente inalterável e
com a elasticidade a que nos habituou; os The Cure ainda conseguem fazer boas
músicas. E disso, provavelmente, já ninguém estava à espera.
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(1) Podemos confirmar que não é um elogio no texto que Mark Fisher dedicou à banda: "It doesn’t matter if we all die: The Cure’s unholy trinity", em k-punk - The Collected and Unpublished Writings of Mark Fisher
(2004-2016), Repeater Books, 2018.
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