Charles Bukowski
SHAKESPEARE NUNCA FEZ ISTO



[A 22 de Setembro de 1978, Bukowski apareceu no então conhecidíssimo programa televisivo francês Apostrophes, da responsabilidade de Bernard Pivot, que junta aí uma mostra daquilo que ele entendeu ser naquela altura os En Marge de la Société. Conceito já de si basto duvidoso – a “margem”, os “marginais” –, para classificar uns intelectuais menos notórios numa sociedade de mercado, digamos, pelo que nos foi dado ver, que Pivot se serviu descaradamente do escritor americano em visita pela Europa como chamariz para promover certa franja da cultura francesa. Adiante, traduzindo o testemunho escrito por Bukowski, que temos do sucedido, irei intercalando dentro de parêntesis rectos comentários ao texto advindos do visionamento desse programa, hoje em dia disponível em suporte digital.]

[…] Sábado à noite eu deveria aparecer num programa de televisão muito conhecido, de difusão à escala nacional. Tratava-se de um talk show literário que durava 90 minutos. [Foram apenas 75 minutos, como se pode comprovar pela edição em DVD: John Dullaghan, Bukowski (extras), Wild Side Video, 2004.] Pedi que me fornecessem 2 garrafas de um bom vinho branco para ir bebendo enquanto estivesse no ar. Entre 50 a 60 milhões de franceses viram o programa.
Comecei a beber ao fim da tarde. A seguir, do que me lembro, lembro-me de eu, Rodin [o editor francês que pagou a vinda de Bukowski à Europa] e Linda Lee [então companheira do escritor] caminharmos pelo meio de seguranças. Depois, sentaram-me à frente do maquilhador, que me encheu de pós, logo derrotados pela gordura da minha cara e pelos buracos na pele. Uma olhadela rápida, e viu-se livre de mim. E ali estávamos nós em grupo à espera que se desse início à transmissão. Desrolhei uma garrafa e dei um trago. Nada mau. Havia 3 ou 4 escritores e o moderador. E ainda o psiquiatra que submeteu Artaud aos electrochoques [Gaston Ferdière]. O moderador, ao que se diz, era um tipo famoso em toda a França [Bernard Pivot], a mim não me pareceu grande coisa. Ali sentado ao meu lado não parava de tremer o pé. “Que é que se passa?”, perguntei-lhe. “Está nervoso?” Nem me respondeu. Enchi-lhe um copo de vinho e pus-lho diante do nariz. “Tome, beba um pouco… vai assentar-lhe no bucho…” Acenou-me que não, com desdém.
E estávamos pois no ar. Na minha orelha haviam posto uma ligação através da qual ouvia o francês traduzido para inglês. Também eu ia sendo traduzido para francês. Como convidado de honra, o moderador começou por mim. Foi esta a minha primeira intervenção: “Conheço inúmeros grandes escritores americanos que gostariam de estar agora aqui neste programa. Pelo que me diz respeito, não lhe dou assim tanta importância…” Nisto, o moderador rapidamente passou a palavra a outro escritor, um velho liberal [Marcel Mermoz, na verdade anarquista autogestionário] que fora traído vezes sem conta, mas que nunca perdera a fé. Não professando eu qualquer política, disse ao velhadas que o achava com boa cara. Falou, falou, falou… o costume.
Seguiu-se então uma escritora. O vinho encantava-me, por isso não tenho bem a certeza acerca do que escrevia ela, mas julgo ser animais, a senhora escrevia histórias com animais. [A Bukowski, no meio dos eflúvios do álcool, não lhe terá passado despercebida a mediocridade de doméstica convencida patenteada pela escritora Catherine Paysan…] Disse-lhe que se me mostrasse um pouco mais as pernas talvez eu conseguisse dizer se ela era boa escritora ou não. [Efectivamente, a meio do programa é-nos dado ver o nosso estimado escritor meter as mãos pelas saias da escritora acima. É um momento artístico histórico, só comparável, uns anos mais tarde, à viva proposta de querer fodê-la, que Serge Gainsbourg faz em directo na televisão, também francesa, a Whitney Houston.] Ela não quis. O psiquiatra que sujeitara Artaud aos electrochoques não tirava os olhos de mim. Outro começou a falar, um escritor francês com uma bigodaça enorme. [Cavanna, que, sendo o responsável pelo atrevido jornal humorístico Charlie Hebdo, e muito libertário e muito libertino – de pacotilha, claro! –, foi cúmplice de Pivot em fazer Bukowski estar quedo e mudo.] Não disse nada, mas nunca mais se calava. As luzes tornavam-se intensas, de um amarelo viscoso. Eu morria de calor sob os projectores. Só me lembro, a seguir, de me encontrar em plena rua de Paris sob um estrídulo e contínuo rugir alucinado à minha volta por todo o lado. Devia haver nas ruas uns dez mil motociclistas. Pedi que me levassem a ver as miúdas do cancã, mas arrastaram-me para o hotel com a promessa de mais vinho.

Na manhã seguinte fui acordado pela campainha do telefone. Era um crítico do Le Monde: “Formidável, seu malandro”, disse ele, “os outros que lá estavam nem sequer se masturbam…” “Que é que eu fiz?”, inquiri. “Não se recorda?” “Não.” “Pois só lhe digo que não há jornal que tenha escrito o que quer que seja contra si. Já é altura da televisão francesa mostrar algo de honesto.”
Após o crítico ter desligado virei-me para Linda Lee: “Que é que aconteceu, amor? Que fiz eu?”
“Bom, apalpaste as pernas à senhora. E depois desataste a beber pelo gargalo da garrafa. Disseste umas coisas. Interessantes, pelo menos no início. Depois o tipo responsável pelo programa não te deixava falar. Pôs-te a mão na boca e dizia Chiu! Cale-se!”
“Ele fez isso?”
“Rodin estava sentado ao meu lado e não parava de dizer-me: Mande-o calar! Mande-o calar!… Vê-se que não sabe como tu és. Por fim, tiraste o auscultador da tradução, deste um último golo de vinho e foste-te embora do programa.”
“Coisas de bêbado.”
“Depois, quando chegaste perto dos seguranças, agarraste um deles pelos colarinhos. E puxaste da tua navalha, ameaçando tudo e todos. Ficaram na dúvida se não estarias a sério. Mas acabaram por se aproximar de ti e puseram-te na rua.” […]
[O mais extraordinário, neste sucesso de acontecimentos, foi Bernard Pivot, um pivot com fuças de Mister Bean, logo à partida haver caracterizado Charles Bukowski, para uma audiência certamente de cagões franceses, como “obcecado sexual e alcoólico”. O mote, portanto, estava dado. Daí para a frente… só se perderam as que caíram no chão.]

[Charles Bukowski, Shakespeare Never Did This: São Francisco, City Lights Books, 1979;
tradução e comentários de Paulo da Costa Domingos]



3 comentários:

Alexandre Kovacs disse...

Excelente! Muito bom o seu texto que me proporcionou momentos de prazer ao lembrar os textos de Bukowski.

Vale lembrar o talento dele também como poeta:

Confession

waiting for death
like a cat
that will jump on the
bed

I am so very sorry for
my wife

she will see this
stiff
white
body

shake it once, then
maybe
again:

“Hank!”

Hank won´t
answer.

it´s not my death that
worries me, it´s my wife
left with this
pile of
nothing.

I want to
let her know
though
that all the nights
sleeping
beside her

even the useless
arguments
were things
ever splendid

and the hard
words
I ever feared to
say
can now be
said:

I love
you.

manuel a. domingos disse...

caro kovacs: o texto não é da minha autoria, mas sim de Paulo da Costa Domingos, como está indicado.

Alexandre Kovacs disse...

Então parabéns ao Paulo da Costa Domingos pelo texto e a você pelo blog inteligente! Certamente voltarei por aqui.