meia-noite todo o dia
Danças Ocultas - Danças Ocultas (1996)
Em 1996 a cidade da Guarda fervilhava de actividade cultural. A sua agenda superava, em qualidade e variedade, as agendas culturais dos chamados "grandes centros urbanos". Ainda não existia o TMG. E a única sala digna era o Auditório Municipal da Câmara Municipal da Guarda. Foi lá que assisti a um concerto dos Danças Ocultas, aquando da apresentação do álbum de estreia do quarteto, o homónimo "Danças Ocultas" (1995). Lembro-me bem do impacto que em mim teve o tema "Folia" (que abre o álbum), todo ele composto apenas pelo som do fole dos acordeões (no caso do grupo trata-se do acordeão diatónico, que no nosso país é mais conhecido por concertina), num ritmo que, na altura, me fez lembrar o som do mar. São várias as vezes que na minha cabeça soa o tema "Dança II", que aproveito para assobiar. Todos os temas do álbum são dignos de nota, não caindo no folclore tradicional, antes procurando novas formas e buscando inspiração no "novo tango" e na música de câmara. As composições são modernas, leves e infinitamente belas.
Um poema de Anzai Fuyue
Prendi com um alfinete uma borboleta à parede. Nunca mais se moverá. É assim a felicidade.
O animal de estimação com o seu laço negro à mesa de jantar tem a forma que um animal de estimação deve ter.A água na garrafa tem a forma da garrafa.E ela de combinação tem uma beleza só sua.em The Modern Japanese Prose Poem - An Anthology of Six Poets, versão minha a partir da tradução inglesa de Dennis Keene, Princeton University Press, p. 84
Calendário
Este fim-de-semana passado realizou-se o XXII Congresso do PCP - Partido Comunista Português, partido do qual sou militante desde 2022. Li as Teses para o Congresso e discuti-as com outros camaradas em plenários. Apresentei a minha concordância, e reservas, sobre os mais diversos temas da política internacional, nacional e interna do partido. Apresentei, por escrito, sugestões de alteração às Teses. Tudo, sempre (e gostaria de sublinhar 'sempre') num ambiente de liberdade e democracia. Aliás, em dois anos de militância activa, nunca me senti minimamente condicionado, ou impedido de expressar a minha opinião. Aliás, sempre fui incentivado a fazê-lo. Só assim é possível construir um partido que é de todos e para todos.
Aproveito para felicitar todos os camaradas que foram eleitos para os mais diversos cargos. Estamos juntos! A luta continua!
Pequena enciclopédia dos dias*
Sábado: quatro de Janeiro de dois mil e vinte
Os dias são um pouco maiores e o sol ajuda a secar
os lençóis lá fora apesar das notícias em directo
dizerem que este ano a história será complicada
ou até o fim do mundo como prega o pastor
evangélico da Avenida Gomes Pereira que ouço
às vezes ao passar pela rua depois de mais um dia
a ensinar a diferença entre always often sometimes
hardly ever never enquanto me imagino poeticamente
a fazer a diferença mesmo sabendo que os alunos
nada querem com advérbios e às vezes para combater
esse sentimento vagueio absolutamente sozinho
pela cidade como numa música de Brian Eno
sendo esta a melhor maneira de descrever tudo isto
sabendo a priori — tenho de ser honesto — que é
uma má comparação mas nem sempre as imagens
são luminosos relâmpagos nem sempre conseguem
iluminar a noite: a maior parte das vezes apenas
cumprem a ligeira função de fazer bonito e mostrar
que alguns de nós lemos ou fomos à escola
A verdade é que a maior parte dos nossos mortos
estão enterrados apesar de todos os dias se cruzarem
connosco na sala de estar ou no quarto quando
à noite apagamos a luz na esperança de descansar
de outro dia de porras tristes mas a noite nunca
é suficiente: há sempre um ruído que te acorda
a meio e pensas na escrita do mundo nos matemáticos
que procuram decifrar os mistérios do universo
Sabes que estás sozinho como eles na sua procura
mesmo quando não sabes o que procurar e insistes
É sempre nesse esforço o avançar e tentar ser
em primeiro lugar o mais honesto contigo a seguir
com os outros porque é assim que consegues sabotar
a canga do mundo as camelices e dessa maneira a cabeça
um pouco mais erguida os ombros mais direitos
Só que hoje é já Sexta-feira: vinte e nove de Janeiro
de dois mil e vinte e um e todos conseguem observar
que o ano que ainda há pouco começou
deixa muito a desejar logo agora que tínhamos tantos
planos traçados para quando a pandemia deixar de o ser
e o sol voltar aos nossos rostos pelos jardins como na infância
que ficou lá no lugar que é dela e que parece agora
e aqui tão distante como algo que é sussurrado
mas nunca sendo feliz ou infeliz esquecido
Tudo o que nos resta em certa medida é continuar
sobre esta terra e não deixar que a memória
seja apenas o que sobra dos dias passados
mas fazer dela uma espécie de linha contínua
enquanto pelos dias cá andarmos nesse dever
de honrar aqueles que a lei da vida transformou
em poalha feita para ser esquecida sabendo que é nesse momento que começa a ser entendida
* a partir do poema Pequena Enciclopédia da Noite de Carlos Nejar.
Ontem
Ontem, à conversa com Dora Bernardo (encenadora), Luciano Amarelo e Rafael Lopes (actores), sobre a peça "De uma sombra a outra". Foi uma bela noite. Obrigado a todas e a todos os que estiveram presentes.
Versões: George Oppen
Na lisura da cama
Enquanto na tarde
O sol passa.
Planta, respiro — NitidamenteOlhos pernas braços mãos dedos,Só pernas e seda.
em The New Anthology of American Poetry – Postmodernisms: 1950–Present, Volume III, Rutgers Universaty Press, p. 12
Continua em cena hoje e amanhã no Teatro Municipal da Guarda
Versões: Ianthi Theocharidou
Dez matérias-primas
Os poetas nasceram prematuramenteos políticos atrasadose as gentes do teatro a tempo.Quando éramos crianças tínhamos medo do escuro. Agora que somos mais velhos temos medo de enfrentar a luz. Uma dose de poesia todos os dias ao jantar faz bem ao estômago e à cidade.em Anthology of Cipriot Poetry, tradução do grego para o inglês de Amy Mims, Nicosia-Cyprus, 1974, p. 213
Calendário
Sempre que ouço Trump falar, fico com a sensação que tirou um curso básico de inglês no Wall Street Institute.
Versões: Miyoshi Tatsuji
A Vila
Prenderam o
veado com uma corda pelas armações, e deixaram-no na escuridão do palheiro. Os
seus olhos azuis brilhavam onde mais nada se via; e ali estava sentado,
perfeito, elegante. Uma batata rolou pelo chão.
Lá fora as
flores da cerejeira tinham caído, e uma bicicleta desceu o monte, abrindo um
longo, claro caminho entre elas.
Viste as
costas de uma menina a espreitar por entre os arbustos. Junto ao ombro, preso
ao vestido, um laço negro.
em The Modern Japanese Prose
Poem - An Anthology of Six Poets, tradução para o inglês de Dennis Keene,
Princeton University Press, p. 62
Indignar-me é o meu signo diário
Ursula K. Le Guin
Versões: Wallace Stevens
Seis paisagens significativas
I
Um velho sentado
À sombra de um pinheiro
Na China.
Vê delfínios,
Azuis e brancos,
No limite da sombra,
Moverem-se ao vento.
A sua barba move-se ao vento.
O pinheiro move-se ao vento.
Assim se move a água
Sobre as algas.
II
A noite é da cor
Do braço de uma mulher:
Noite, a fêmea,
Obscura,
Perfumada e dócil,
Esconde-se.
Uma lagoa brilha
Como uma pulseira
Agitada numa dança.
III
Meço-me
Contra uma grande árvore.
Descubro que sou mais alto,
Pois consigo chegar ao sol
Com o meu olho;
E consigo chegar à beira do mar
Com o meu ouvido.
Ainda assim, não gosto
Da maneira como as formigas rastejam
Para dentro e fora da minha sombra.
IV
Quando o meu sonho estava perto da lua,
As pregas brancas do seu vestido
Encheram-se de luz amarela.
As plantas dos seus pés
Ficaram vermelhas.
O seu cabelo ficou coberto
De certos cristais azuis
Das estrelas,
Não muito distantes.
V
Nem todas as facas dos postes de luz,
Nem os cinzéis das longas ruas,
Nem as macetas das abóbodas
E altas torres,
Podem esculpir
Aquilo que uma estrela esculpe,
A bilhar entre as folhas da videira.
VI
Racionalistas, de chapéus quadrados,
Pensam, em salas quadradas,
A olhar para o chão,
A olhar para o tecto.
Limitam-se
Aos triângulos rectângulos.
Se experimentassem rombóides,
Cones, curvas e elipses ―
Como, por exemplo, a elipse da meia-lua ―
Os racionalistas usariam sombreiros.
em Collected Poems, London: Faber & Faber, 2006, pp. 64-66.
Calendário
Calendário
Versões: Yolanda Castaño
O que entre nós acontece diariamente
As frases que nos empurram.
As frases sábias como pequenos animais.
Que nos apontam o dedo,
deixando-nos com o rabo de fora.
As frases a perderem altura,
as frases que nos atropelam.
Que se infiltram incógnitas,
que vivem de empréstimos as frases.
Que nos atacam pelas costas,
vendendo-nos como traficantes.
Que nos tocam no ombro e,
quando nos voltamos, desaparecem.
Que nos ultrapassam pela esquerda.
Que aparecem inesperadamente as frases.
A jogarem as frases connosco às apostas.
A seguirem a carreira diplomática as
frases.
Que nos fogem como comboios.
A partir pedra as frases.
A abrir trincheiras sem parar e, de repente,
a fulminarem-se.
As frases que nos agasalham,
cobertor e chá quente as frases.
A fingirem que não sabem nada,
as frases a fazerem-se de parvas.
Nós precipitando-nos pouco a pouco em cada frase.
em Materia, tradução do galego para o espanhol pela autora, Visor Libros, 2023, pp. 31-33.
The Cure - Songs of a Lost World (2024)
Devo começar
este texto com um ponto prévio: a) The Cure são uma das bandas mais importantes
da minha vida, fazendo parte da minha “Santíssima Trindade Musical” (ao lado de
Joy Division e Bauhaus) e, verdade seja dita, não me consigo imaginar sem eles
no meu percurso de vida; b) ainda me lembro do dia em que na televisão ouvi
“Just like heaven” e depois descobri que o meu primo Zé-Tó tinha o álbum duplo
“Kiss me, Kiss me, Kiss me” (1987), tendo logo pedido para o gravar numa cassete
de noventa minutos Sony UX-S (tinha há pouco tempo recebido uma Telefunken com
gira-discos e dois decks de cassetes, que substituiu o velhinho leitor de
cassetes Sanyo); c) tenho todos os álbuns de The Cure até “Wish” (1992), não
tendo comprado, nem ouvido na íntegra (o que é importante para aquilo que aqui
vão ler), mais nenhum álbum da banda, desde “Wild Mood Swings” (1996) até “4:13
Dream” (2008); d) todavia, ouvi uma ou outra música desses álbuns, de onde
concluí algo: Porl Thompson, guitarra, e Boris Williams, bateria, faziam muita
falta; e) assim, não irão aqui ler que “Songs of a Lost World” (2024) é o
melhor álbum de The Cure dos últimos 32 anos.
Foi há muito que a banda britânica traçou o seu caminho. Ao contrário de outros seus contemporâneos, e segundo Mark Fisher, os The Cure permaneceram fiéis ao imperativo modernista do pós-punk (“novelty or nothing”), procurando “a sound that was ethereal rather than earthy, artificial rather than visceral.”. Esta afirmação de Fisher, apesar de parecer, não é um elogio (1), mas encerra em si a principal característica que pode ser encontrada, em toda a sua força e esplendor, no último trabalho da banda britânica.
Para além do título (que nos remete para uma espécie de fim dos tempos), este último álbum de The Cure está envolto numa espécie de espectralidade, já que são espectros, fantasmas de um outro tempo (que tanto pode ser passado como futuro) aquilo que podemos encontrar na sonoridade, mas também nas letras de Robert Smith, que remetem para os álbuns que constituem a trilogia da banda (“Seventeen Seconds”, “Faith”, “Pornography”): “Hopes and dreams are gone/the end of every song” (“Alone”); “I know, I know/That my world has grown old/And nothing is forever” (“And Nothing is Forever”); “Down, down, down, yeah, I'm pretty much done/Staring down the barrel of the same warm gun” (“Drone:Nodrone”); “Hear the bells beyond the sea/It's almost too late/Shadows growing closer now/And there is nowhere left to hide” (“I Can Never Say Goodbye”).
Um dado curioso
sobre “Songs of a Lost World” é a epígrafe de John Keats que encontramos no
“booklet” do CD (sou “retro” e ainda não aderi a essa modernice chamada
“vinil”): “and when I feel, fair creature of na
hour,/that I shall never look upon thee more/never have relish in the faery
power of unrefleeting love/then on the shore of the wide world I stand
alone,/and think til love and fame to nothingness do sink”: e que vem reforçar a ideia de que este poderá ser o último
álbum de estúdio da banda liderada por Robert Smith. A epígrafe dá o mote a todo o álbum, quer falemos de temas (amor, angústia
existencial, morte) ou, atrevo-me a dizer, “paisagem sonora”. Sim, paisagens
sonoras que nos remetem para outros lugares, mas também para outros álbuns da banda:
“Pornography” (1982), “Kiss me, Kiss me, Kiss me” (1987), “Desintegration”
(1989), “Wish” (1992). Ter referido estes álbuns não é um acaso. Neste último
trabalho da banda britânica podemos encontrar, nos 8 temas que compõem o álbum,
o ritmo mecanizado, marcial e ligeiramente industrial da bateria (muito vincado
em “Pornography”); a envolvência das guitarras (o substituto de Porl Thompson
talvez tenha sido encontrado para, aliado à técnica de Robert Smith [muito menosprezado enquanto
guitarrista], levar a banda para outros patamares sónicos), que podemos
encontrar em “Kiss me, Kiss me, Kiss me”; o ambiente etéreo e muito “dream pop”
de “Desintegration”; a presença constante do piano e o crescendo progressivo,
que podemos encontrar, por exemplo, num dos melhores temas de “Wish”: “From the
Edge of the Deep Green Sea”.
“Songs of a Lost World” vem
confirmar duas coisas: a voz de Robert Smith continua praticamente inalterável e
com a elasticidade a que nos habituou; os The Cure ainda conseguem fazer boas
músicas. E disso, provavelmente, já ninguém estava à espera.
______________________________________________
(1) Podemos confirmar que não é um elogio no texto que Mark Fisher dedicou à banda: "It doesn’t matter if we all die: The Cure’s unholy trinity", em k-punk - The Collected and Unpublished Writings of Mark Fisher
(2004-2016), Repeater Books, 2018.
Versões: Rosario Castellanos
Terceira Elegia do Amante Fantasma
I
Como cera mole, consumidapor uma pálida chama, os meus diasgastam-se no arder da tua lembrança.Apenas iluminas o túnel de silêncioe o espanto indefinidoem que passo a passo vou entrando.Algo se agita no meu ser que ainda protesta contra a avalanche do esquecimento que arrasa atrás de si todas as coisas. Ah, pudesse então crescer e erguer-me, iluminar como uma lamparina alimentada pelo teu intenso azeite, numa poderosa e clara fogueira! Mas já nada vem até mim para me salvar da tristeza inerte que me sufoca. Grandes distâncias erguem finas névoas entre o teu rosto e os que aqui te esquecem. A tua voz é quase um eco e longe brilha o teu olhar.IITento surpreender a tua nua ausência, abro as portas sem avisar e acaricio as janelas quase abertas. Encontro as divisões desertas e sombrias onde o vazio congela os seus contornos ajustando-se à linha do teu corpo. É como um copo profundo e simples para beber a totalidade do lamento.IIITalvez não estejas aqui a dominar os meus olhos a comandar o meu sangue, a trabalhar nas minhas células, a provocar uma pulsação de trevas. Talvez não seja o meu peito a cripta que te guarda. Mas eu não seria se não fosse este castelo em ruínas que ronda o teu fantasma.em Rosario Castellanos, Material de Lectura, serie Poesía moderna, Universidade Nacional Autónoma do México, 2009, pp. 8-9.
Calendário
A descoberta de Mark Fisher foi-me tardia, isto porque sinto que há muito o deveria ter lido, descoberto. O seu blogue "k-punk" andou por aí. Passou-me ao lado. Mas também é verdade que ainda não cheguei à Física Quântica, ou à Teoria das Cordas, e a Conjectura de Hodge é-me um mistério. Isto tudo para dizer que conheço poucos que escreveram sobre música como Fisher escreveu. Há a partilha do mesmo tempo e de certas vivências (com as devidas distâncias), o que resulta em muitas e várias afinidades. Todavia, o que mais sobressai é a clareza do seu pensamento e escrita.