quatro da manhãsono agitado por sonhosde viagens quenão podem ser compreendidasde lugares quenão podem ser entendidosa casa rangecomo as articulações do infinitoos corredores cheiosdo aroma intoxicanteda podridão doce das goiabasbananas abacates ananasesfruta de uma vidasaberes que os corpos celestes estão à noite em chamas até que a luz da madrugada os extingue saberes que a montanha é uma sombra negra repleta dos sons abafados da vida que amassa na terra saberes que a montanha cuspirá estrelas com mapas de viagens que não podem ser compreendidas saberes que o oceano está sempre ali à noite uma trémula faixa negra saberes também que compreendê-lo nunca descreverá o oceano e saberes que és uma pessoa no meio de pessoas que vagueiam no fogo da morte e saberes que os teus apenas aqui estão para partir que o amor é construído e o riso e o choro e toda a gente tem um sonho como uma pedra transformada em bandeira numa paisagem nocturna a viagem que não pode ser entendida deve ser explicada na fraca luz que não pode ser compreendida até aqui: tu e os teus e nós e também eu o crepúsculo o silêncio antes do canto das aves com este vago verso desenhado no vislumbrar do vazio: as rimas do amor recitais de pesar um pedido de ajuda à relutância da luz morta que há muito se foi e que é agora apenas chama cicatrizes histórias murmuradas de viagens que não podem ser compreendidas para um desaparecer que não pode ser conhecidoSeapoint, 7 de Outubro 2015em die na-dood, a partir da tradução do africânder para inglês de John Mateer, Human & Rousseau, 2017, pp. 205-7.
meia-noite todo o dia
Versões: Breyten Breytenbach
Poça de água e folhas, Alameda Padre Álvaro Proença, Lisboa, 30 de Janeiro 2025
At a time when, more than ever before, we have to live by hope, the question is what photography can contribute.
Robert Adams, Why People Photograph, Aperture, 2023, p. 102
Um poema de Tao Yuanming
Regador e pano, Almeirim, 25 de Janeiro 2025
Versões: Gwendolyn Brooks
E talvez descer pela viela abaixo,
Onde as crianças do asilo brincam.
Quero passar bem o dia.
Elas fazem coisas maravilhosas.
Divertem-se alegremente.
A minha mãe desdenha, mas tudo bem,
Porque não vão para dentro às nove menos um quarto.
A minha mãe diz que a Johnnie Mae
Vai crescer e tornar-se numa mulher leviana.
Que mais cedo ou mais tarde o George vai preso
(No Inverno passado vendeu o nosso portão das traseiras)
Mas está tudo bem. A sério que está.
Também gostaria de me tornar numa mulher leviana,
E usar corajosas meias e ligas negras como a noite
Slavoj Žižek
O universo de Lynch é efectivamente o universo do «sublime ridículo»: as cenas ridículas mais patéticas (aparecimento de anjos no final de 'Twin Peaks - Os Últimos Dias de Laura Palmer' e 'Coração Selvagem', o sonho do pintarroxo em 'Veludo Azul') são para levar a sério. Contudo, como já sublinhámos, o mesmo se aplica às figuras «maléficas» ridículas na sua violência excessiva (Frank em 'Veludo Azul', Eddy em 'Estrada Perdida', o barão Harkonnen em 'Duna'). Mesmo uma figura repugnante como Bobby Peru em 'Coração Selvagem' representa uma «força vital» fálica excessiva, uma afirmação incondicional de vida. em Lacrimae Rerum, tradução de Luís Leitão, Orfeu Negro, 2013, p. 259.
David Lynch (1946-2025)
Calendário
A minha relação com a fotografia, em primeiro lugar, é a do jogo, procurar todos os dias um novo desafio. Experimentar, pisar terreno desconhecido, ir até onde me falta pé. Há muito aprendi que viver daquilo que faço do ponto de vista artístico/criativo (poesia, teatro, edição, fotografia) é impossível. Mas como refere Robert Adams: se um fotógrafo não consegue viver da fotografia, ao menos que ela o faça sentir vivo.
Recanto com porta, Almeirim, 12 de Janeiro 2025
Quinta da Granja, Avenida Lusíada, Lisboa, 13 de Janeiro 2025
Bomba de água e poste, Almeirim, 12 de Janeiro 2025
Charneca, Almeirim, 12 de Janeiro 2025
Um poema de Elena Toumazi
A Toupeira e o Sol (excerto)
Sobre limpar, nem uma palavra;de algum tempo para cá as coisas entraramnum ritmoque retira toda a esperança.Permanecem sem falara olhar para os desconhecidos e novos objectosdesaprovados pelas suasvelhas coisasespessas como pó.“Arrumar um e depois outro” Um suspiro de admiração toma conta de mim. “O primeiro um pouco mais para a direita e ficará perfeito.” Mãos quentes cobrem o meu corpo os teus olhos ardem. “Muito bem. Agora muda os dois ao mesmo tempo. É necessária precisão e sistematização de movimentos”. Fragmentos do nosso poema atravessam o mar a voar. A água e a luz numa mesma união. Estes seres humanos ficaram esquecidos no meu caminho, construíram as suas casas junto aos meus pés, sentam-se a resolver exercícios ou a escrever música nas palmas das minhas mãos. E aquele que sobre os meus ombros ri alto e aquele que come o meu cabelo pensando que são malvas. Onde os coloco? Onde os deixo? Estes seres humanos têm belos olhos mas corpos pesados como ferro. Até os seus beijos ficaram gravados na minha pele quando me confundiram com um prado. Interrogo-me sobre como irei apagar os versos e as cores agora que estão de partida.em Anthology of Cipriot Poetry, versão minha da tradução do grego para inglês de Amy Mims, Nicosia-Cyprus, 1974, pp. 214-215
Corrimão da Estação de Metro Avenida, Lisboa, 9 de Janeiro 2025
Danças Ocultas - Danças Ocultas (1996)
Em 1996 a cidade da Guarda fervilhava de actividade cultural. A sua agenda superava, em qualidade e variedade, as agendas culturais dos chamados "grandes centros urbanos". Ainda não existia o TMG. E a única sala digna era o Auditório Municipal da Câmara Municipal da Guarda. Foi lá que assisti a um concerto dos Danças Ocultas, aquando da apresentação do álbum de estreia do quarteto, o homónimo "Danças Ocultas" (1995). Lembro-me bem do impacto que em mim teve o tema "Folia" (que abre o álbum), todo ele composto apenas pelo som do fole dos acordeões (no caso do grupo trata-se do acordeão diatónico, que no nosso país é mais conhecido por concertina), num ritmo que, na altura, me fez lembrar o som do mar. São várias as vezes que na minha cabeça soa o tema "Dança II", que aproveito para assobiar. Todos os temas do álbum são dignos de nota, não caindo no folclore tradicional, antes procurando novas formas e buscando inspiração no "novo tango" e na música de câmara. As composições são modernas, leves e infinitamente belas.
Um poema de Anzai Fuyue
Prendi com um alfinete uma borboleta à parede. Nunca mais se moverá. É assim a felicidade.
O animal de estimação com o seu laço negro à mesa de jantar tem a forma que um animal de estimação deve ter.A água na garrafa tem a forma da garrafa.E ela de combinação tem uma beleza só sua.em The Modern Japanese Prose Poem - An Anthology of Six Poets, versão minha a partir da tradução inglesa de Dennis Keene, Princeton University Press, p. 84
Calendário
Este fim-de-semana passado realizou-se o XXII Congresso do PCP - Partido Comunista Português, partido do qual sou militante desde 2022. Li as Teses para o Congresso e discuti-as com outros camaradas em plenários. Apresentei a minha concordância, e reservas, sobre os mais diversos temas da política internacional, nacional e interna do partido. Apresentei, por escrito, sugestões de alteração às Teses. Tudo, sempre (e gostaria de sublinhar 'sempre') num ambiente de liberdade e democracia. Aliás, em dois anos de militância activa, nunca me senti minimamente condicionado, ou impedido de expressar a minha opinião. Aliás, sempre fui incentivado a fazê-lo. Só assim é possível construir um partido que é de todos e para todos.
Aproveito para felicitar todos os camaradas que foram eleitos para os mais diversos cargos. Estamos juntos! A luta continua!
Pequena enciclopédia dos dias*
Sábado: quatro de Janeiro de dois mil e vinte
Os dias são um pouco maiores e o sol ajuda a secar
os lençóis lá fora apesar das notícias em directo
dizerem que este ano a história será complicada
ou até o fim do mundo como prega o pastor
evangélico da Avenida Gomes Pereira que ouço
às vezes ao passar pela rua depois de mais um dia
a ensinar a diferença entre always often sometimes
hardly ever never enquanto me imagino poeticamente
a fazer a diferença mesmo sabendo que os alunos
nada querem com advérbios e às vezes para combater
esse sentimento vagueio absolutamente sozinho
pela cidade como numa música de Brian Eno
sendo esta a melhor maneira de descrever tudo isto
sabendo a priori — tenho de ser honesto — que é
uma má comparação mas nem sempre as imagens
são luminosos relâmpagos nem sempre conseguem
iluminar a noite: a maior parte das vezes apenas
cumprem a ligeira função de fazer bonito e mostrar
que alguns de nós lemos ou fomos à escola
A verdade é que a maior parte dos nossos mortos
estão enterrados apesar de todos os dias se cruzarem
connosco na sala de estar ou no quarto quando
à noite apagamos a luz na esperança de descansar
de outro dia de porras tristes mas a noite nunca
é suficiente: há sempre um ruído que te acorda
a meio e pensas na escrita do mundo nos matemáticos
que procuram decifrar os mistérios do universo
Sabes que estás sozinho como eles na sua procura
mesmo quando não sabes o que procurar e insistes
É sempre nesse esforço o avançar e tentar ser
em primeiro lugar o mais honesto contigo a seguir
com os outros porque é assim que consegues sabotar
a canga do mundo as camelices e dessa maneira a cabeça
um pouco mais erguida os ombros mais direitos
Só que hoje é já Sexta-feira: vinte e nove de Janeiro
de dois mil e vinte e um e todos conseguem observar
que o ano que ainda há pouco começou
deixa muito a desejar logo agora que tínhamos tantos
planos traçados para quando a pandemia deixar de o ser
e o sol voltar aos nossos rostos pelos jardins como na infância
que ficou lá no lugar que é dela e que parece agora
e aqui tão distante como algo que é sussurrado
mas nunca sendo feliz ou infeliz esquecido
Tudo o que nos resta em certa medida é continuar
sobre esta terra e não deixar que a memória
seja apenas o que sobra dos dias passados
mas fazer dela uma espécie de linha contínua
enquanto pelos dias cá andarmos nesse dever
de honrar aqueles que a lei da vida transformou
em poalha feita para ser esquecida sabendo que é nesse momento que começa a ser entendida
* a partir do poema Pequena Enciclopédia da Noite de Carlos Nejar.
Ontem
Ontem, à conversa com Dora Bernardo (encenadora), Luciano Amarelo e Rafael Lopes (actores), sobre a peça "De uma sombra a outra". Foi uma bela noite. Obrigado a todas e a todos os que estiveram presentes.