Miguel Martins


Não sou particularmente boa pessoa.
Não tenho especial bom gosto.
A minha família é como as demais.
As coisas muito boas desperdiçam-se em mim.
Dentro dos limites do razoável burguês,
qualquer coisa me serve.

Prefiro conversar com um velejador solitário,
um condutor de tanques de guerra,
um taxista de Istambul
do que com um pensador da pós-modernidade
ou um poeta de palavras astuciosamente enclavinhadas.
Mais: prefiro despir uma operária de Manchester
a qualquer coisa dessas
(por mim, tudo à minha volta estaria em trânsito constante).

Não sou muito competente em nada,
a preguiça não ajuda
e a pressa inexplicável muito menos.

Sou imediatista:
materialista e anárgiro.

Tenho uma aproximação instrumental aos sonhos
e uma abordagem nefelibata às coisas práticas
(é óbvio que se pode ser volúvel sem se ser gelatinoso).

Habituei-me a depender dos outros,
a contar com eles
e a não me considerar, sequer, em dívida.

Húbris sem némesis.

Tenho todo o tipo de preconceitos.
Apoio-me num andaime de suficiências reveladas.

A avidez tomou em mim o lugar da razão e da justiça.
Demagogia por demagogia, mais vale nenhuma
e a retórica é uma canseira.

É preciso muita objectividade para viver tão enovelado
e é preciso viver muito enovelado para ser tão objectivo
(de igual modo, tenho de ter muita saúde para ter tão pouca
— a gordura armazenada nas bossas dos camelos
ou um acaso genético
ou um sofá herdado).

Ora bem: dito isto,
sou dos tipos menos desinteressantes que conheci.
Tenho olfacto para animar qualquer sala durante meia hora
e só não me dão de beber em ambientes daquela miopia
— empedernidamente fúnebre —
que se topa à légua pela acne tardia,
a pele amarelada,
a cara emaciada dos que só têm uma (e logo assim!),
gente que não sabe soldar dois arames
e faz minetes como os gatos bebem leite.

09/03/2020


retirado do seu blogue: Extra Light

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