Quando quem escreve se perde das palavras atinge os sentidos sem significação, sem símbolo. Aí, o inconsciente torna-se um domínio rigoroso e o atento lençol de água da linguagem explode como lâmpada contra pedra. Dessa ordenação da racionalidade esquecida, das emoções sem sentimento, da inteligência em combustão sem cultura, a mente oculta dos discursos irrompe. E fixa, na noite dos sons, sinais de ordenação das coisas pelo saber, a razão, a sensibilidade, a consciência desviados para charcos imprevisíveis onde as aluviões dos nomes esqueciam. É a árdua prefiguração súbita, a imagem que nenhum espelho ainda vira, o som a que nenhum silêncio se seguira ainda, uma função a preparar-se para atingir o seu primeiro destino. Quer seja o problema das classes quer seja o infigurável, quer seja a consideração da alma, a materialidade dos vocábulos só por um furor que nenhuma ciência nenhum sentimento explicam atinge algumas vezes o oco onde as cinzas da vida frutificam e cumprem a sua maldição, o mistério. Dizer o novo, incendiar o conflito, levar o homem para outro homem, qualquer coisa pode ser um poema. Mas o que lhe deu a forma da mudança, a recusa da asfixia, a ligação ao espírito ficou para sempre perdido à compreensão de todos. Foi uma vertiginosa passagem pelo mais vazio dos lugares, um golpe entre a memória, as outras vidas e a tenção talvez mal ferida de quem tão surdamente conhecia a linguagem que por um momento a esqueceu para ela o dizer a si, ao seu mundo, ao que nem ele nem o seu mundo sabiam nomear.
em Consequência do Lugar, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 100.
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