E o que mais confrange, é esta
abdicação, no Estado como no indivíduo, ser feita de indolência estúpida, de
desgoverno insólito, de falta de brio cívico. Não nos cerceia a miséria filha
de um estancamento completo de recursos: cerceia-nos o desleixo, derivante dum
descaminho de força, e duma aplicação viciada de predilecções e faculdades. A
maioria das nossas populações é feita desses tipos intermédios, expectantes,
passivos, em que lhes falei no começo destas notas, que os fortes pisam e
manietam ao seu carro, e para que não há lugar na vida agitante dos nossos
dias. O resultado é este: em cima, o país gozado por dez ou doze charlatães, de
parceria com dez ou doze bandidos, o todo fazendo permutações de infâmias e
jiga-jogas de negociatas, que lhe permitam aguentarem-se alguns meses mais no
tombadilho: em baixo a massa avulsa, morrinhenta, sórdida, sem força,
desiludida de tudo, irrespeitosa de tudo, insultando-se como os bêbados,
sofrendo o azorrague como os cães, vendo passar as afrontas indiferente, e deixando-se
cair alfim no próprio vómito, onde a letargia a açovaca, até que uma chicotada
nova a faça outra vez estrebuchar!
em Os Gatos, selecção e introdução por M. Antónia Carmona Mourão e M.
Fernanda Pereira Nunes, Lisboa: Ulisseia, colecção Biblioteca Ulisseia de
Autores Portugueses, 1986, p. 131.
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