Quando durmo, nada sinto
Quando durmo, nada sinto,
e em mal e bem indistinto
nada posso conhecer:
não sei aquilo que sou,
nem o que fui, nem se vou
saber o que devo ser.
Vi a lembrança fugir
do passado e do provir;
não sou mais do que vã massa
de bronze em homem moldada,
ou qualquer forma elevada
a guarnecer uma praça.
Mas se vivo tenho alento
que enche meus flancos de vento,
sim, memória em mim não dura;
vede pois o que serei
quando morto jazerei
no fundo da sepultura!
Voando a alma em pleno salto
vai ter com Deus lá no alto
resolver-se nele só;
mas meus corpo, se o enterro,
cerrado em sono de ferro,
nada mais será que pó.
em Alguns Amores de Ronsard, tradução e introdução de Vasco Graça Moura, Lisboa: Bertrand, 2003, p. 139.