Poderá surpreender que falemos de justiça no plano ético, no qual nos mantemos ainda, e não estritamente no plano moral, ou até mesmo legal, que abordaremos de imediato. Uma razão legitima esta inscrição do justo no desígnio da vida boa e em relação com a amizade pelo outro. Primeiro, a origem quase imemorial da ideia de justiça, a sua emergência fora da moldura mítica na tragédia grega, a perpetuação das suas conotações religiosas até mesmo nas sociedades secularizadas, atestam que o sentido da justiça não se esgota na construção dos sistemas jurídicos que ele suscita. Depois, o sentido da justiça é solidário do [sentido] de injusto, o qual aliás muitas vezes o precede. ´E sobretudo através do modo do queixume que penetramos no campo do injusto e do justo: “´E injusto!” – eis a primeira exclamação. Não há que espantar, desde logo, que se encontre um tratado sobre a justiça nas Éticas de Aristóteles, que nisto segue o exemplo de Platão. O seu problema é o de formar uma ideia de igualdade proporcional que preserve as inevitáveis desigualdades da sociedade no quadro da ética: “a cada qual na proporção do seu contributo, do seu mérito”, tal constitui a fórmula da justiça distributiva, definida como igualdade proporcional. ´E certamente inevitável que a ideia de justiça enverede pelas sendas do formalismo pelo qual já a seguir caracterizaremos a moral. Mas seria bom demorarmo-nos nesta etapa inicial onde a justiça é ainda uma virtude na trajectória de uma vida boa e onde o sentido do injusto precede, pela sua lucidez, os argumentos dos juristas e dos políticos.
em Ética e Moral, tradução de António Campelo Amaral, Covilhã: LusoSofia, colecção Textos Clássicos LusoSofia, Universidade da Beira Interior, 2008, pp.8-9.
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