Durante muito tempo acalentei a ideia de que o Mundo estava todo contra mim. Eram conspirações ao virar da esquina para me tramar. Passei a vestir de negro, para assim poder passar despercebido entre as sombras. Usei negro dos dezoito aos vinte e quatro anos (todos os dias, sem excepção). Depois: fartei-me: não passava despercebido entre as sombras e no verão sofria com o calor. Não valia a pena continuar. Decidi, então, dedicar-me mais a sério à poesia. Pensava que residia aí a salvação. Passei a ser um lírico tipo Manuel Alegre. E falhei. A desilusão levou-me por caminhos tortuosos, onde a iniquidade* do Mundo se tornou mais visível. Decidi, depois, dedicar-me à luta social através da palavra. Mas a luta, pelos vistos, já não quer nada com as palavras. Ou melhor: a luta não quer nada com ninguém. Na realidade: quem é que quer alguma coisa com a luta? Temos televisão, internet, jornais, livros, álcool, tabaco, tabaco-que-faz-rir, frigorífico que refresca tão bem a cervejinha, máquina de lavar roupa e loiça, carro, casa, sofá a condizer com os móveis da sala, aparelhagem, aquecimento-central. Luta? Lutar? Para quê?
*s. f
1. Qualidade ou caráter de iníquo.
2. Grande injustiça; pecado; crime; perversidade.
*s. f
1. Qualidade ou caráter de iníquo.
2. Grande injustiça; pecado; crime; perversidade.
6 comentários:
bem visto!
muito gostas tu de praticar o hara kiri poético. qualquer dia espetas a faca no coração e, então, não haverá volta a dar...
continua a lutar
a tua poesia é das poucas que ainda tem vida lá dentro
nestes dias não consigo prescindir de autores como tu
Gostei. Muito.
Deixe-me adivinhar. Levantou-se e não sabia se havia de optar pela matraca chorona se pelo reco-reco do coitadinho. Vestiu os dois.
anónimo 1: não sei se é bem visto. bem vistas as coisas.
luís: já sabes a resposta (sorriso).
anónimo 2: tem que ler mais e melhor poesia.
a. lopes: isso é o sangue a falar mais alto.
Senhor Jorge Melícias: em primeiro lugar, deixe-me cumprimentá-lo por escolher assinar comentários com o seu verdadeiro nome. outra coisa não esperava de si. em segundo lugar, dizer que tem toda a razão.
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