Adília Lopes


«Certo dia, quando trabalhava no JL, fui incumbido de entrevistar uma escritora chamada Adília Lopes. A primeira pergunta que lhe fiz foi sobre um poema seu de que eu gostava e gosto muitíssimo. Chama-se Autobiografia Sumária e só tem três versos: “Os meus gatos / gostam de brincar / com as minhas baratas.” O meu objectivo era impressionar a autora com a minha excelente interpretação do poema. Disse-lhe que aqueles versos eram também o resumo da minha vida. Os meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico (“Não é por acaso”, disse eu, “que Fialho de Almeida reuniu os seus textos críticos num volume chamado Os Gatos”), aquilo que em mim é perspicaz – e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil. E aquela operação poética – que é, igualmente, uma operação humorística – de escarnecer de si próprio era-me tão familiar que podia descrever-me de forma tão competente como à autora do poema.
Os olhos de Adília Lopes humedeceram-se. Fosse qual fosse a noite solitária em que escreveu o poema, estava longe de imaginar que, tanto tempo depois, a sua alma gémea se apresentasse à sua frente, compreendendo-a tão profundamente. Foi então que Adília Lopes falou. Disse o seguinte: “Pois. Bom, comigo, o que se passa é que eu tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.” E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.»


Ricardo Araújo Pereira, in Visão, 26 de Março 2009

retirado do blogue frenesi, com negrito da minha responsabilidade.

6 comentários:

Anónimo disse...

o poema, mesmo com a interpretação era sofrível. sabendo isso torna-se lamentável. não acha?

manuel a. domingos disse...

caro anónimo:

muito obrigado pelo seu muito precioso comentário.

não considero nem o poema sofrível (como não considero nenhum poema de Adília Lopes sofrível). e a explicação de Adília Lopes só veio reforçar a minha ideia sobre poesia.

volte sempre

Anónimo disse...

qual é a sua ideia sobre poesia?

manuel a. domingos disse...

caro (último) anónimo:

muito obrigado pelo seu muito precioso comentário.

em resposta à sua pergunta: http://meianoitetododia.blogspot.com/search/label/da%20poesia

Anónimo disse...

muito obrigado pelo seu muito precioso contributo para a reflexão poética em portugal.

manuel a. domingos disse...

caro (último) anónimo:

aprecio sentido de humor. mesmo qual ele é de um anónimo.

volte sempre