As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar - Malcolm Lowry



Toda a grande literatura é grande pelo facto de ser indissociável da vida de quem a escreve. Kafka, Dostoievski, Tolstoi, Bukowski, Céline, escreveram grande literatura, pois, em certa medida, as suas vidas confundiram-se com aquilo que escreveram (e vice-versa). Malcolm Lowry (1909-1957) faz parte deste grupo de escritores profundamente humanos. O seu romance Debaixo do Vulcão é disso exemplo. E agora temos, graças à selecção e tradução de José Agostinho Baptista, alguns dos seus poemas: As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar.

Dizer que os poemas de Lowry constituem um itinerário de vida do autor, uma espécie de filosofia de vida e de escrita, um mapa que ajuda a compreender os seus fantasmas, talvez não seja precipitado. Lowry revela na sua poesia todo o desencanto com a vida e com o futuro. Os homens pouco podem fazer, principalmente quando «têm corações e flancos que sofrem e oxidam.» (p. 55). Tudo em Lowry é um passo dado em direcção ao abismo, onde nenhuma salvação é possível. Mesmo um farol (elemento imprescindível para quem navega e procura chegar a terra firme) é visto como um elemento perturbador, incapaz de salvar: «O farol atrai a tempestade e ilumina-a.» (p. 57). Todo este pessimismo poderá ter uma explicação. Não podemos esquecer que Lowry assistiu a duas guerras que deixaram marcas profundas – Guerra Civil de Espanha e Segunda Grande Guerra Mundial. Talvez a descrença no Homem tenha aumentado em Lowry devido a esses dois acontecimentos: «E o que devemos e o que não devemos tolerar/Ao caos de hoje, o quê? – pelo vivo albatroz e/Pela queda de Ícaro?» (p. 57). O Homem é retratado como ganancioso, sem conhecer limites. Que saída para o Homem? Existindo, ela não será a mais fácil. O Homem está cercado por todos os lados, havendo apenas um caminho a percorrer: «As escarpas estão à esquerda, enquanto à direita/O mar é como aquele mar cujo rumor percorreu/Um dia na sua infância a planície tempestuosa.» (p.75).

E que papel está reservado ao(s) poeta(s)? O poeta é alguém que está cansado e que pouco pode fazer: «O poeta, ele próprio, que luta com a forma/Do seu tortuoso trabalho, sabe, e tendo intencionalmente/Pago com a mesma moeda a fadiga do mar, convidou/Os guindastes da alma que trabalham no seu quarto. (…) Adormecido, ele luta toda a noite com uma vela!/Mas continua a sonhar com palavras para além da vida dos barcos.» (p. 67). O poeta desistiu, já não procura a salvação através das palavras, estas abandonaram-no: «Ele sorriu e disse: um dia destes/Deixarem este lugar como as palavras me deixaram a mim.» (p. 81). Que papel poderá ter a poesia no meio de todo o caos? Pouco ou nenhum. Quando o caos está instalado, a poesia pouco poderá fazer: «Não há poesia quando vives lá./Essas pedras são tuas, esses ruídos são o teu pensamento,/Os atroadores eléctricos de ferro e as ruas que te prendem/Ao bar sonhado onde o desespero se senta/São eléctricos e ruas: a poesia está noutro lugar.» (p. 65).

Marinheiros e bêbados povoam os poemas de Lowry. Em nenhum momento o autor consegue distanciar-se deles, pois eles são a expressão da procura contínua pela sua identidade. E de nada serve a fama alcançada pelo romance Debaixo do Vulcão. Ela só veio aumentar o fosso entre Lowry e o mundo. Ela só veio afastá-lo da sua procura: «Como um bêbado a fama consome a casa da alma/Revelando que só trabalhaste para ela –/Ah, quem me dera nunca ter conhecido o seu beijo traiçoeiro/E tivesse ficado na obscuridade para sempre, falhado e vencido.» (p. 109). A ironia do último verso é evidente. Lowry nunca se considerou um vencedor.

Neste conjunto de poemas Malcolm Lowry expressa os seus mais profundos sentimentos sobre a vida e o mundo. Negar que eles se cruzam com a sua própria vida é negar a sua essência. Os seus poemas são o resultado de experiências por si vivenciadas. São tudo menos fugas.

Malcolm Lowry, As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar (selecção e tradução de José Agostinho Baptista), Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, 127 pp.

1 comentário:

ana salomé disse...

muito boa leitura, manuel :)
estou precisamente a ler este livro de poemas e o debaixo do vulcão. ambos fabulosos.