O Evadido
Já não me recordo muito bem como foi, mas deve ter sido mais ou menos assim: vi Barfly (1987), de Barbet Schroeder, com Mickey Rourke no papel de Henry Chinaski. Fui imediatamente assaltado por uma insaciável curiosidade acerca daquele escritor que passava a vida nos copos, à porrada nas traseiras de botequins decrépitos, vivendo como quem aposta todos os dias a própria vida. E, se bem me recordo, foi aquele pormenor dos poemas soltos, vagueando ao ritmo da desgraça pelas vielas das cidades, em folhas dactilografadas ou manuscritas, caídas na sorte ou no azar de quem lhes pegasse, foi esse pormenor, dizia, que me atiçou ainda mais a curiosidade: afinal, quem seria Henry Chinaski? Vim a saber, então, tratar-se do alter-ego do escritor Charles Bukowski (1920–1994), um alemão emigrado nos Estados Unidos da América (do Norte) a quem calhou, vá-se lá saber se por destino ou por opção, a missão de nos iludir com a senda dos malditos. Insere-se naquele grupo vasto de escritores que cativam pela recusa da normalidade, ou, se preferirem, pela incorporação de tudo o que possamos julgar à margem da lei e no limite da sanidade. Mas falemos de literatura. Que há nos livros de Bukowski que possa interessar tanto, pelo menos tanto, quanto interessa o folclore da sua vida? Talvez a resposta se encontre, precisamente, no primeiro livro que lhe li: «Eu escrevo ficção.» / «O que é ficção?» / «Ficção é um aperfeiçoamento da vida.» (Mulheres, Trad. Fernando Luís, Publicações Dom Quixote, 1992) Não estranhem se não encontrarem na crueza da escrita deste autor, uma crueza sempre tão colada ao que alguns chamarão, sem estarem cientes do que isso seja, de realidade, não estranhem se não encontrarem nessa crueza um qualquer sinal de aperfeiçoamento. Não é fácil encontrá-lo, pois ele esconde-se por detrás de uma aparente nudez. Essa nudez, que tantos sublinham, é apenas o disfarce de quem descobriu estar irremediavelmente perdido dentro de si próprio, de quem se encontra, afinal, A Sul de Nenhum Norte, pois esse é o lugar de todos os que escrevem sem outro intento que não seja o de se entregarem à sorte ou ao azar das palavras. É um autor profundamente melancólico, este Bukowski. Se quiserem uma comparação mais rasteira, a sua escrita é como um strip-tease, há sempre nela aquele engano dos artifícios, aquele disfarce de um corpo débil por dentro, rijo por fora, perdido no imo, achado nos músculos, nos nervos, nos ossos, na carne. É o corpo intoxicado de quem cambaleia, a passos inseguros, para a segurança da morte. Poderão outros falar de niilismo, abjeccionismo, neo-decadentismo, etc, etc, etc… para mim, toda aquela violência será sempre uma outra forma de evasão. Uma evasão sem rumo, certa da sua inutilidade, mas ainda assim uma evasão.
Sem comentários:
Enviar um comentário