Salada Russa ou Os Perigos de Andar no Escuro


Ontem decidi sentar-me à secretária e escrever. Melhor dizendo: decidi sentar-me à mesa da cozinha, pois nesta casa, onde agora vivo, não tenho secretária. E escrever. A vontade era pouca. Nenhuma, para ser mais correcto. Mas tens que escrever, pensei, nem que seja sobre aquilo que comeste ao almoço – que foi salada russa – ou ao jantar – que foi um bom prato de canja de galinha. Tens que te habituar a escrever um ou dois ou três textos por dia, pensei, para que a mão não se esqueça de o fazer, para que não esqueça o toque suave da caneta – que não é assim tão suave, lembrei-me, pois quando estudava e fazia os resumos da matéria fiquei com um calo no dedo médio da mão direita e nunca mais o pirete teve o mesmo sentido. Pensei escrever sobre a criação poética, mas achei melhor não o fazer. Falar sobre a criação poética é uma coisa muito séria e ainda tens a salada russa às voltas no estômago, agora acompanhada pela canja de galinha. A criação poética é uma coisa muito séria, repeti o pensamento na minha cabeça, e não deve ser abordada de ânimo leve. Escreve antes, pensei, sobre o significado da Arte, qual o seu papel na sociedade actual, qual o seu sentido oculto – se é que tem algum – qual o seu objectivo. A ideia pareceu-me uma boa ideia, no entanto careço de know how e coloquei-a de parte. Mas olha que é uma boa, pensei, e não podes desistir nem à primeira nem à segunda. Tens que insistir, pensei, e não te levantas deste lugar enquanto não escreveres alguma coisa e sobre alguma coisa. É que escrever sobre nada já deu o que tinha a dar. Qual a piada de escrever sobre o que comeste ao almoço ou jantar? Qual o interesse? Quando se escreve deve ser sempre para dizer algo de importante, que tenha valor, que interrogue, questione. Falar sobre o almoço ou jantar não interroga, não questiona. Apenas o faz se alguém perguntar: ele não gosta de salada russsa? Porquê? Comeu canja ao jantar? Porquê? Não comeu fruta hoje? Porquê? Gosta de fazer a barba depois de tomar um duche? Porquê? Nesse caso o texto cumpre a sua função. Obscura, mas cumpre. Passado algum tempo fartei-me de estar à espera que surgisse alguma ideia interessante. Levantei-me, apaguei a luz e dei uma valente cabeçada na porta da cozinha. A cabeça ficou a latejar durante alguns minutos. Depois, tive uma ideia: escreve sobre os perigos de andar no escuro, no escuro enquanto metáfora de algo maior, é claro. E foi o que fiz.

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