Afinal quem escreveu isto?
Há muito que se debate a questão do acordo ortográfico entre Portugal e o Brasil. Há muito que o Português que se fala/escreve em Portugal deixou de ser o mesmo que se fala/escreve no Brasil. O Português do Brasil é mais rico, desenvolto, livre: já não é Português, é Brasileiro. Prova disso é o último romance de Chico Buarque (1944). Quem lê Budapeste encontra, sem dúvida, uma outra maneira de escrever, dizer e sentir o Português. Encontra uma outra língua. Desde a estrutura sintáctica ao uso do vocabulário, tudo em Budapeste nos remete para uma outra entidade/identidade, que não é a nossa, mas sim a deles. O tema do romance não podia ser mais actual: a identidade e a propriedade intelectual. Num mundo cada vez mais globalizante e globalizado, a identidade de cada um é algo que começa a estar em risco. No dia-a-dia todos nós somos obrigados a interpretar vários papéis: somos pais carinhosos, trabalhadores submissos, patrão implacável, vizinho apático. No caso de Budapeste, o protagonista, José Costa, vive dividido entre duas mulheres, dois países (Brasil e Hungria) e duas línguas, desempenhando em cada situação um papel diferente, o que o leva a questionar a vida que realmente quer ter. A questão da propriedade intelectual surge no seguimento da profissão que José Costa desempenha: escritor anónimo, isto é, escreve livros em nome de outras pessoas (algo que não é estranho aos leitores portugueses): autobiografias, romances, poesia. Depois de concluídos, os livros que “não escreveu” têm um enorme sucesso comercial, e ele, mais uma vez, questiona-se. Esta situação é, sem dúvida, perversa, e quem escreve em blogs muitas vezes é confrontado com textos seus assinados por outras pessoas. O plágio começa a ser regra numa cultura cada vez mais “internetizada” e “internetizante”. Muitos levam à letra aquilo que Isidore Ducasse proclamou no século XIX (mas isso é outra história). Budapeste é um romance consciente do tempo em que foi escrito e do tempo em que é lido ou poderá ser lido. E, principalmente, é um romance que se lê como poesia: «Deitou-se de lado na cama e recostou a cabeça em meu ombro, ciente que, sem interromper a leitura, eu sentia um prazer em ver suas ancas realçadas sob a camisola. Então moveu de leve uma perna sobre a outra, deixando nítido o desenho de suas coxas debaixo da seda. E no instante seguinte se encabolou, porque eu lia o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia.» (p. 135)
Chico Buarque, Budapeste, Lisboa: Dom Quixote, 8ª edição, 2006, 135 pp.
3 comentários:
Que defeito o de o português se rebaixar perante outros aparentmente maiores, e de se gabarolar perante outros aparentemente inferiores. manuel domingos, sem deixar de estar de acordo com quase tudo o que diz, como pode provar esta sua afirmação: «O Português do Brasil é mais rico, desenvolto, livre...»? Aliás, no final dá um exemplo do romance do Chico que poderia ser escrito por qualquer português que nunca tivesse ouvido «brasileiro» na vida, mesnmo no «encabolado».
caro fag:
muito obrigado pelo seu comentário.
sabia que corria um risco ao afirmar que o Português do Brasil é mais rico, desenvolto e livre.
devo, desde já dizer, que poucos foram os autores brasileiros que li. mas sempre que o fiz senti essa liberdade, essa riqueza e a desenvoltura.
quando me refiro ao rico, basta pensar na riqueza do vocabulário existente. eu sei que o mesmo acontece em Portugal, mas cá poucos são aqueles que os utilizam, pois quando o fazem são acusados de regionalistas (veja-se o exemplo de Aquilino). no Brasil isso não acontece.
quando me refiro ao desenvolto, refiro-me a maneira de escrever, sempre mais limpa e corrida.
quanto ao livre, essa liberdade pode ser verificada na não utilização, por exemplo, do "c" em ator ou em fato (facto). no entanto, penso que estes exemplos poderão não ser muito válidos.
quanto ao exemplo que dei, não quis servir de exemplo para a desenvoltura, liberdade e riqueza do Português do Brasil, mas sim para a linguagem poética presente durante todo o romance.
abraço
manuel
Eu continuo a gostar da literatura portuguesa, independentemente de gostar de alguns autores brasileiros.
Mas confesso que, actualmente, salvo raras excepções, a literatura portuguesa está muito mais "pobre"...
Mas continuo a defender o meu "senhor"... o Português...
"...Esta situação é, sem dúvida, perversa, e quem escreve em blogs muitas vezes é confrontado com textos seus assinados por outras pessoas."
E eu que o diga! Quanta coisa minha, já apareceu assinada noutros locais por outras pessoas e quando denuncio, pura e simplesmente apagam os blogues ou, apagam os comentários...
Especialmente os brasileiros são useiros em plagiar...descaradamente.
Posso dizer que 3 poemas meus, escritos há anos em fóruns de literatura, foram publicados num livro de poesia no Brasil, por alguém que lá, está acima de suspeitas! Mas os poemas são meus!
Escrevi várias vezes à plagiadora, alertando a situação e ela pura e simplesmente, respondeu-me que fosse lá ao Brasil provar a acusação (isto quase como uma ameaça...)
O certo é que desisti do assunto.
Era difícil de provar, até porque eu publicava no tal fórum sob um pseudónimo (ou nick, como agora se diz) e esse fórum foi inclusivamente apagado (na altura estava sob administração de brasileiros, agora é de espanhóis…) e não tenho com que provar nada, a não ser a impressão dos poemas àquela altura, mas o que provam?
Um abraço
:((
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