Da traição e outros fantasmas


1.

Aos quatro anos há palavras que não têm significado. «Traição» é uma delas. Até ao dia em que vês alguém esconder o fato de Pai Natal debaixo da cama.


2.

Numa noite que não dizes estrelada, pois tens os olhos fechados, beijas pela primeira vez. Crês que dela também é o primeiro. E o único desse verão. Só mais tarde, passados os anos da ingenuidade, descobres que, afinal, não era o primeiro nem o único que ela recebia atrás daquela capela.


3.

Este és tu aos quinze anos: camisa de flanela, t-shirt, calções, meias grossas, botas, pêra: o grunge. Os Nirvana cantam a revolta. É com eles que começas a ouvir música. Defendes a anarquia e mais umas ideias que surgem com as primeiras cervejas. Até que num mês, de um ano que esqueceste, Kurt Cobain rebentou com os miolos: dizem-te. Nesse dia ouves o Nervermind até à exaustão. Depois: arrancas os posters, guardas as cassetes. E ainda hoje te perguntas: por que razão Cobain nos traiu?


4.

Mas cedo te vês rodeado de novos traidores. Andas no 12º ano. E estudas filosofia.

publicado na Revista Minguante nº 3

4 comentários:

António Lopes disse...

Só o Eu e a Morte são fiéis. Tudo o resto é traição embrulhado em papel de verdade.

manuel a. domingos disse...

olha que às vezes até o Eu te trai.

David Correia (Jota) disse...

Fabuloso...

Anónimo disse...

Eu gosto da fidelidade..
beijos