Pequena enciclopédia dos dias*

Sábado: quatro de Janeiro de dois mil e vinte

Os dias são um pouco maiores e o sol ajuda a secar

os lençóis lá fora apesar das notícias em directo

dizerem que este ano a história será complicada

ou até o fim do mundo como prega o pastor

evangélico da Avenida Gomes Pereira que ouço

às vezes ao passar pela rua depois de mais um dia

a ensinar a diferença entre always often sometimes

hardly ever never enquanto me imagino poeticamente

a fazer a diferença mesmo sabendo que os alunos

nada querem com advérbios e às vezes para combater

esse sentimento vagueio absolutamente sozinho

pela cidade como numa música de Brian Eno

sendo esta a melhor maneira de descrever tudo isto

sabendo a priori — tenho de ser honesto — que é


uma má comparação mas nem sempre as imagens

são luminosos relâmpagos nem sempre conseguem

iluminar a noite: a maior parte das vezes apenas

cumprem a ligeira função de fazer bonito e mostrar

que alguns de nós lemos ou fomos à escola

A verdade é que a maior parte dos nossos mortos

estão enterrados apesar de todos os dias se cruzarem

connosco na sala de estar ou no quarto quando

à noite apagamos a luz na esperança de descansar

de outro dia de porras tristes mas a noite nunca

é suficiente: há sempre um ruído que te acorda

a meio e pensas na escrita do mundo nos matemáticos

que procuram decifrar os mistérios do universo

Sabes que estás sozinho como eles na sua procura

mesmo quando não sabes o que procurar e insistes

É sempre nesse esforço o avançar e tentar ser

em primeiro lugar o mais honesto contigo a seguir

com os outros porque é assim que consegues sabotar

a canga do mundo as camelices e dessa maneira a cabeça

um pouco mais erguida os ombros mais direitos

Só que hoje é já Sexta-feira: vinte e nove de Janeiro

de dois mil e vinte e um e todos conseguem observar

que o ano que ainda há pouco começou

deixa muito a desejar logo agora que tínhamos tantos

planos traçados para quando a pandemia deixar de o ser

e o sol voltar aos nossos rostos pelos jardins como na infância

que ficou lá no lugar que é dela e que parece agora

e aqui tão distante como algo que é sussurrado

mas nunca sendo feliz ou infeliz esquecido


Tudo o que nos resta em certa medida é continuar

sobre esta terra e não deixar  que a memória

seja apenas o que sobra dos dias passados

mas fazer dela uma espécie de linha contínua

enquanto pelos dias cá andarmos nesse dever

de honrar aqueles que a lei da vida transformou

em poalha feita para ser esquecida sabendo que é nesse momento que começa a ser entendida






* a partir do poema Pequena Enciclopédia da Noite de Carlos Nejar.


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