Classe

 

Há muito que não lia um livro que me dissesse tanto. Falo de Regresso a Reims (D. Quixote, 2019), de Didier Eribon. Para alguém como eu que cresceu numa vila que por sua vez cresceu à volta de uma fábrica têxtil (vila essa cujo declínio está intimamente ligado ao declínio e encerramento da referida fábrica), filho de um trabalhador dessa mesma fábrica e sindicalista activo até meados dos anos oitenta, ler um livro como este de Didier Eribon é uma espécie de "nota explicativa"(com as devidas distâncias) sobre alguns temas que há muito me perseguem, nomeadamente o sentimento de "pertença a uma classe", isto porque desde muito cedo fui confrontado com essa questão nos mais diversos lugares: família, escola, grupo de amigos.

Ainda hoje esse sentimento de "pertença a uma classe" me diz muito. A título de exemplo: a música sempre foi uma das minhas grandes paixões. Desde pequeno habituei-me a ouvir música na televisão e na voz da minha Mãe. Um dia os meus Pais compraram um pequeno rádio com leitor de cassetes e passámos a ir à feira comprar cassetes pirata, mas sempre com grande parcimónia. A primeira aparelhagem, tal como o primeiro vinil, só entrou em casa quando fiz o nono ano. Ainda no outro dia contei este episódio e alguém que me perguntou "porquê?". A minha resposta não se fez esperar: porque não havia dinheiro para mais. Mas esta questão só se tornou clara para mim quando fui estudar para o Liceu da Guarda, onde quase todos os meus colegas de turma tinham aparelhagem em casa e vinis "herdados" dos seus pais (bem como bibliotecas consideráveis). Foi nesse momento que senti, pela primeira vez, pertencer a uma classe diferente daqueles meus colegas. Quase todos eles eram filhos de professores, engenheiros, bancários, advogados, técnicos superiores. Eu era filho de um contabilista numa fábrica têxtil (que sempre viu a progressão da sua carreira hipotecada pelo facto de ter sido sindicalista e pelo facto de não ser praticante do beija mão) e de uma "dona de casa" (que fazia malha e renda para fora com o objectivo de equilibrar a conta-corrente lá de casa). E isso, a bem da verdade, fazia toda a diferença.

Todavia, esse sentimento de "pertença a uma classe" ainda se agudizou mais com a minha entrada numa residência de estudantes dos Serviços Sociais da Direcção Regional de Educação do Centro. Nela contactei com rapazes de todo o distrito da Guarda, vindos de terras cujo nome nunca tinha ouvido: Prados, Pala, Vide Entre Vinhas, Outeiro de Gatos, Póvoa do Concelho, Forno Telheiro, entre outras. Essa experiência marcou-me para sempre (e digo isto com perfeita noção do exagero que esta frase pode encerrar), porque, em certa medida, eu não vinha da
classe daqueles rapazes, quase todos eles filhos de trabalhadores agrícolas, operários da construção civil, sapateiros, alfaiates, pequenos comerciantes. Em comparação com eles: eu era um privilegiado.

Tudo isto veio baralhar o meu sentimento de "pertença a uma classe": por um lado eu não pertencia, de forma inequívoca, à classe dos meus colegas de Liceu; mas também não pertencia, de forma inequívoca e em absoluto, à classe dos meus colegas de residência, embora me sentisse mais próximo destes do que daqueles em termos de classe.

1 comentário:

sr. santos disse...

creio que podemos (em certa medida) desatar esses nós de classe através da cultura: apesar de nao deixar cada qual de ser um novelo de diferente tipo (como lã, ou seda, etc.), acabamos por conseguir enlaçar-nos, se bem que depois esses novos laços eventualmente se desfaçam! abc, rod.