Um poema de Carlos Poças Falcão

 

Completas (um programa)


Proferia sem cessar frases completas
não fosse a realidade bater-lhe sem sentido

Frases completas, tensas, dirigidas
de um caos a outro caos
tecendo o envoltório magnífico de um homem

As frases não cantavam nem tinham de cantar
apenas sustentavam em arco a coisa imensa
a grande ruína de tudo o que aparecia

Era um ermita de tipo moderno
orando na corrente dos transportes públicos
erguendo nas descidas metropolitanas
passando e abençoando desertos suburbanos

Era necessário compor frases completas
não fosse a realidade confundir-se com a mentira
Jurou chegar ao fim numa evocação contínua
teimando na palavra como o sol teima na luz
mas sem poder algum, nem alento, nem usura
— apenas real, como um rei no seu exílio

Se bebia uma cerveja num último reduto
ou se atravessava em grande perigo uma avenida
eram frases quase santas aquelas que o salvavam
tensas, dirigidas, como um arco de guerreiro

Pois que todos sofriam de uma voz entrecortada
de um coração disperso num olhar em fragmentos
ele era o ermita transportador do manto
dessa mortalha leve que a inteligência outrora amava

Não é o insignificante o inverso da verdade?
E assim vestindo o mundo ia ele sem descanso
envolvendo-o nas faixas de defunto ou de menino
segundo as exigências tão claras do sagrado

Anónimo, perdido e cheio de esperança
agora é outra hora, a do silêncio, a melhor hora



em Telhados de Vidro - nº. 2, Lisboa: Averno, Maio de 2004, pp. 11-12.

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