Os parentes afastados
Somos todos parentes afastados
E consumimos água, luz e gás.
Temos sono pesado na balança
Nivelada, neurótica, noctâmbula.
Pomos todos a mão no parapeito
Antes do salto eterno sem retorno.
Vemos todos a cova no cemitério
Dos prazeres fáceis prometidos.
Ficamos com o ar triste de bovinos
Deitados num palheiro humedecido.
em Branza, Lisboa: Editorial Minerva, 2019, p. 23.
Bica de bairro
Entras no café,
Pedes uma bica.
Há gente que fala
Com ferocidade.
Há gente que falta
À serenidade.
Devem ter razão.
Não tens a certeza.
Deixas o café,
Fumas um cigarro.
em Ponto Infinito, Lisboa: Editorial Minerva, 2018, p. 28.
Abegoaria
Pregada numa viga,
A estampa de Santa Catarina
Protege as bestas do mau-olhado.
Esterco e palha
Cheiram a trigo decepado,
Perfume de capela camponesa.
Encostado ao cajado,
O lavrador alisa o couro
Dos ruminantes embevecidos.
E um galo canta fora de horas.
em Excertos Incertos, Lisboa: Editorial Minerva, 2018, p. 32.
Ver agrava os riscos de cegueira
Fumar,
Afixaram nos maços,
Agrava o risco de cegueira.
Mas também
Praticar o onanismo,
Beber aguardente de bagaço,
Comer açúcar às colheres,
Cobiçar a mulher do próximo,
Ler a bula dos fármacos,
Ler as cláusulas dos contratos,
Ler os classificados do jornais,
Ler as mil e uma noites num dia,
Ver comboios de alta velocidade,
Ver navios depois do sol-posto,
Ver na multidão um rosto,
Ver para acreditar.
em Antídotos, Lisboa: Editorial Minerva, 2018, p. 66.
Imagem e semelhança
Não sou adepto de peregrinações.
Basta-me um caminhito na erva.
Certas ausências em parte incerta.
Não tenho alma de vagabundo.
Sei apenas de momentos memoráveis:
Uma nuvem no céu, uma sombra no poço.
Os meus passos não vão dar a parte nenhuma.
Não tenho encontros. Não me arrisco.
Não faço nada que me obrigue a ir e a vir.
Os meus desígnios são insondáveis.
É a minha única parecença com Deus.
em Sob este título, Lisboa: Editorial Minerva, 2017, p. 22.
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