José Pascoal

 

Os parentes afastados


Somos todos parentes afastados
E consumimos água, luz e gás.

Temos sono pesado na balança
Nivelada, neurótica, noctâmbula.

Pomos todos a mão no parapeito
Antes do salto eterno sem retorno.

Vemos todos a cova no cemitério
Dos prazeres fáceis prometidos.

Ficamos com o ar triste de bovinos
Deitados num palheiro humedecido.



em Branza, Lisboa: Editorial Minerva, 2019, p. 23.




Bica de bairro


Entras no café,
Pedes uma bica.

Há gente que fala
Com ferocidade.

Há gente que falta
À serenidade.

Devem ter razão.
Não tens a certeza.

Deixas o café,
Fumas um cigarro.



em Ponto Infinito, Lisboa: Editorial Minerva, 2018, p. 28.




Abegoaria


Pregada numa viga,
A estampa de Santa Catarina
Protege as bestas do mau-olhado.

Esterco e palha
Cheiram a trigo decepado,
Perfume de capela camponesa.

Encostado ao cajado,
O lavrador alisa o couro
Dos ruminantes embevecidos.

E um galo canta fora de horas.



em Excertos Incertos, Lisboa: Editorial Minerva, 2018, p. 32.




Ver agrava os riscos de cegueira


Fumar,
Afixaram nos maços,
Agrava o risco de cegueira.
Mas também
Praticar o onanismo,
Beber aguardente de bagaço,
Comer açúcar às colheres,
Cobiçar a mulher do próximo,
Ler a bula dos fármacos,
Ler as cláusulas dos contratos,
Ler os classificados do jornais,
Ler as mil e uma noites num dia,
Ver comboios de alta velocidade,
Ver navios depois do sol-posto,
Ver na multidão um rosto,
Ver para acreditar.



em Antídotos, Lisboa: Editorial Minerva, 2018, p. 66.




Imagem e semelhança


Não sou adepto de peregrinações.
Basta-me um caminhito na erva.
Certas ausências em parte incerta.

Não tenho alma de vagabundo.
Sei apenas de momentos memoráveis:
Uma nuvem no céu, uma sombra no poço.

Os meus passos não vão dar a parte nenhuma.
Não tenho encontros. Não me arrisco.
Não faço nada que me obrigue a ir e a vir.

Os meus desígnios são insondáveis.
É a minha única parecença com Deus.



em Sob este título, Lisboa: Editorial Minerva, 2017, p. 22.

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