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(…) os seus pensamentos, como os seus sentimentos, tinham sido sempre extremamente sérios, o que de mais sério poderia haver, e os seus pensamentos e os seus sentimentos tinham sempre de coincidir com a sua existência (…)

Thomas Bernhard


No outro dia comecei a reler a Antologia Poética (organizada por Vasco Graça Moura e publicada pela Círculo de Leitores em 1988) de Vitorino Nemésio. Se a memória não me falha, foi o segundo livro de poesia que entrou em casa dos meus pais. O primeiro foi Os Lusíadas, comprado aos Amigos do Livro. Em Manteigas, como noutras terras longe dos grandes centros urbanos, as livrarias escasseavam ou, simplesmente, não existiam. Os livros e a música chegavam através do Círculo de Leitores e dos Amigos do Livro. Ainda lembro a ansiedade de folhear a revista do Círculo e poder escolher ou um livro ou uma cassete (gira-discos só entrou em casa tinha eu já 14 anos). Este livro de Nemésio foi escolhido pelo meu Pai. Estou certo que nunca leu Nemésio, mas escolheu-o porque se lembrava do autor na televisão e sabia que era importante e porque — ainda um dia o irás dar na escola — o que, na realidade, nunca aconteceu. O livro por lá ficou arrumado na estante até ao dia em que lhe peguei pela primeira vez. A sua primeira leitura, estou certo agora, não me marcou. Considerei-o enfadonho e pouco ou nada me disse. Agora, que a idade é outra e as leituras que a sustentam também, a leitura da Nemésio está a ser uma revelação, como se de um novo mundo se tratasse. Tive a mesma sensação com a leitura de Cinatti e de António Manuel Couto Viana, cuja poesia devorei na Biblioteca de Ponte de Lima, quando para aqueles lados estive colocado como professor, e como não tinha aquecimento em casa: ia para a Biblioteca Municipal para estar quente e não gastar luz na casa que tinha alugada. Houve uma outra vez, na Benedita, em que o mês estava a sobrar e o salário não esticava, vi-me um dia a jantar laranjas, à maneira de Bandini. No dia seguinte o fígado deu sinal e as mãos começaram a largar pele. Acredito agora, e estou disso certo, que autores como Nemésio, Cinatti, Couto Viana, Barahona, António Salvado, só poderão ser totalmente apreciados, e compreendidos, a partir de certa idade, quando começamos também a largar pele, isto é, a largar lastro, ou lixo, isto é, quando começamos apenas a prestar atenção ao essencial e certos poetas que nos disseram muito aos dezoito, vinte, vinte e dois, começam a parecer demasiado ingénuos, obsoletos, espécie de balões insuflados, quer pela nossa jovem idade quer por tudo aquilo que líamos nas revistas, jornais e, também, disso estou agora certo, noutros poetas. A verdade é que a poesia trouxe-me, até hoje e disso estou agora certo, dissabores. Trouxe-me amigos, sim. Mas também me trouxe uma espera ao cimo de uma rua, porque um poeta da nossa praça não gostou que eu o chamasse "imbecil", quando ele estava, sem dúvida alguma, a ser imbecil. E mesmo assim pedi-lhe desculpa, disse-lhe que sim, que tinha razão, que eu não tinha o direito de o chamar "imbecil". Mal sabia eu aquilo que me esperava. E foi este o primeiro defeito que encontrei nos poetas: só gostam de ser poetas e não admitem ser tratados de outra maneira. Esquecem que são pessoas como as outras e que podem ser imbecis, grunhos e maus, também como as outras pessoas. E nesse grupo incluo-me também porque, antes de escrever versos e ser considerado poeta por poucos, sou uma pessoa com muitos defeitos e duas ou três virtudes. Alguns poetas também me ensinaram que certas questões éticas deixam num instante de ser questões éticas para passarem a ser pormenores. E alguns poetas também me ensinaram que a honestidade intelectual é algo que se deve sempre pedir aos outros. E alguns poetas também me ensinaram que os críticos literários são seres abjectos, principalmente quando não escrevem sobre o último livro que publicámos, ou sobre todos os livros que publicámos e que "me saíram da pele". Mas depois são esses mesmos poetas que enviam todos os seus livros a críticos literários e depois esses mesmos livros são encontrados em feiras de livros usados com a dedicatória que os denuncia. Só que eles nunca dão por isso, ou fingem que não dão por isso. E há ainda os poetas, que em primeiro lugar são pessoas, que não se comprometem com nada. Ou melhor: o único compromisso que assumem é o não se comprometerem, passando por entre os pingos da chuva, não vá a bolsa de criação literária ser entregue a outro, ou a bolsa da fct ser entregue a outro, ou a viagem a Guadalajara ser entregue a outro, ou o convite para participar nesta e naquela antologia ser entregue a outro. Estes também são aqueles que reduzem a sua opinião crítica em relação a algo, desde que esse algo os possa comprometer naquele momento ou noutro qualquer momento da sua vida, a um encolher de ombros. E depois há os poetas que são como franco-atiradores e disparam em todas as direcções, porque o importante é aparecer custe o que custar, dividindo-se em encontros, jogos florais, bienais, simpósios e todo o tipo de congresso, desde que envolva mesa, cama, palmada nas costas e elogios q.b., caso contrário não vão. E depois há ainda os poetas que pagam para serem editados, isto é, as editoras cobram dinheiro, honorários, para os poetas poderem usar a chancela, a marca, nos seus livros. No fundo a vaidade "impede-os" de fazerem edições de autor, mas na realidade é aquilo que são: edições de autor: porque foram os autores a pagar o livro na sua totalidade.  No fundo são edições de autor disfarçadas. No fundo, é um negócio como outro qualquer.  Mas todos, todos eles, todos os poetas partilham entre si, quase secretamente, aqueles versos de Da Weasel: Toda a gente grita: todos diferentes todos iguais! /Mas se calhar há uns quantos bacanos a mais. E todos, todos eles, se queixam da canga que nos é imposta, que lhes é imposta, quando eles também são, afinal, a canga.

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