Um poema de Tatiana Faia



Circunstancial


as pontes da manhã
afundam-se neste copo de papel cheio de café
ainda que tu esperes notícias
ou dês por ti ocupando de novo
o lugar onde têm dormido os teus homens
e a garganta seca espere por água
como os olhos esperam pelo despertar
tardio num dia de semana
tão cedo e já sentada à secretária
no teu local trabalho
sendo inimaginável o teu ofício

enche-se de gin um copo ao fim do dia
e os objectos não se compõem
com a facilidade com que o último dos curadores
organiza objectos mínimos nos expositores
são delicados os seus gestos
e os teus pensamentos têm a violência
de um fundo de lâminas
arranham como certas cordas
aquelas que equilibram o som das canções
onde algumas vozes roucas de repente
nos pubs onde se juntam os profissionais
de sexta-feira à tarde

e claro o teu coração afoga-se
na brancura do papel no colarinho da camisa
na promessa de algumas palavras
escrevinhadas a negro rápidas como os vultos
que diante da janela se movem
junho fecha as asas rápido como um pássaro
atordoado pela notícia de mais um inverno precoce
o seu equilíbrio numa só pata
enquanto à tua volta
eles desapertam gravatas
mastigam em silêncio os seus hambúrgueres

o tempo só pára de existir à sexta-feira à tarde

ele cujos modos são tão
anódinos

que nunca diria uma palavra que comprometesse
isto é que ferisse
mede agora a distância entre os polegares e o pescoço

ao desapertar o nó da manhã em redor do pescoço
tu queres livrar-te dele e do dia
queres um lugar onde os gaúchos não voltem
para falar das suas facas
e inglaterra é um poema que ainda não escreveste

tu ias dizer-me em algum ponto
que era imaculado o amor dele
como estações de comboios
ladeadas de verde com previsão de lagos
ao redor
ou a fome estampada nos olhos
no instante antes de comparecermos
antes de começarmos
com fome laboral
a devorar os nossos jantares

o sacrifício quotidiano
é capaz de ser
o adensar de uma distância antes breve

ou capturar a precedência urgente
assumida por certas expressões
como por exemplo:

como me têm divertido
estes homens e os seus leões


em Pombos Lerdos, s/l: Medula, 2018, pp. 21-24.

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