Marcos Pinto (Manuel Bento de Sousa)


Há neste mundo duas ciências. Uma, que a humanidade vai fazendo e desfazendo cada dia, e que consta de uma teorias hipotéticas firmadas em factos imaginários, massa confusa que a mesma humanidade conduz às costas sem saber o que leva. Outra que é a obra pensada e criada pelos eleitos de Deus, pelos génios raros que de tempos a tempos vêm, ninguém sabe donde, a realizar as grandes descobertas e os grandes inventos, de que o homem se aproveita, sem os agradecer a quem lhos dá.
A primeira adula a vaidade do vulgo, espoja-se nas academias, faz diligências para perpetuar-se nos livros que a traça há-de-roer, e todos os dias vai renovando as doutrinas efémeras de que se compõe, substituindo cada hipótese, que se fez velha, por um novo erro, que só dá, como produto real, uma casaca nova para quem o inventa e que dura apenas o tempo que a mesma casaca leva a romper-se.
A segunda cresce sempre e indefinidamente, nada perde do que já possui, ressuma contínuos benefícios, mata a fome de uns, enxuga as lágrimas de outros, vai levantando arco sobre arco na ponte que há-de unir o homem a Deus, e tem uma história longa e eterna, da qual cada capítulo tem por título um nome célebre e imortal.
A primeira dá, aos que a geram, a celebridade enquanto vivem e o esquecimento no dia em que morrem, ainda mesmo que as inutilidades, que produzem, logrem durar através dos tempos. Tanto sabemos nós hoje quem em épocas remotíssimas edificou as pirâmides egípcias como sabemos quem, já no fim do século passado, inventou os chapéus redondos.
A segunda ganha, para os que a criam, o escárnio dos contemporâneos e a glória póstuma. As suas obras ficam para sempre, e com as suas obras ficam os seus nomes, desde Noé, que nos princípios do Mundo fabricou o vinho às gargalhadas da família, até Franklin, que inventou o pára-raios, enquanto os seus patrícios julgavam que ele andava apenas divertindo-se a lançar papagaios ao vento.
Os filhos de Noé descompuseram o seu pai, e a academia de Londres censurou a banalidade de Franklin; e contudo nós ainda hoje bebemos vinho e abrigamo-nos seguros com o pára-raios.
O autor das pirâmides foi provavelmente muito celebrado, e o fabricante dos chapéus provavelmente condecorado; e todavia as pirâmides só vivem hoje para aninhar serpentes e os chapéus redondos para nos darem dores de cabeça.
Há, pois, duas ciências: uma, que é a verdade que sobrevive; outra, que é o erro que morre; uma, que é criada pelo génio; outra, que é produzida pelo orgulho; uma, que é o sopro de Deus; outra, que é o arroto do homem; uma, que é um bolor de podridão estendido pela superfície da terra; outra, que é a vegetação virente a que chega a cultura pavonesa.
Da primeira ciência riem-se os parvónios, e não a querem para si; a segunda estimam-na, apreciam-na e guiam-se por ela.
E por que será isto?
É pelo que estou farto de repetir. É por uma razão de coerência. É porque em ciência, como em tudo o mais, a Parvónia é povo de bom senso.


em A Parvónia – recordações de viagem, Lisboa: Frenesi (conforme as edições de 1868 e 1894), 2007, pp. 152-154.

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