Vergílio Ferreira: 1916-2016




É o meu escritor português. Une-me a ele a costela beirã e o sotaque. Se fosse vivo faria hoje cem anos. Dediquei-lhe três anos da minha vida: Conta-Corrente: um diário 1974/1980 (a perspectiva vergiliana do 25 de Abril e da Pós-revolução). Ainda ontem, em conversa com amigos, o lembrámos. Hoje li um artigo (duas páginas) no Diário de Notícias, assinado por João Gobern, evocativo do centenário do seu nascimento. Há uma frase sua que me serve de lema: «O que é preciso é reinventar o começo, ocupar o espaço da inquietação.» (Alegria Breve, p. 124). Muitas outras há. Mas esta é a.

Uma faceta desconhecida, pela maioria, é a de poeta. Existem poemas seus dispersos em algumas publicações. A maior parte deles estão nos vários volumes de Conta-Corrente. Mais tarde, aqueles dignos de publicação, foram coligidos em Uma Esplanada Sobre o Mar (Difel, 1986). Vergílio Ferreira tinha a consciência das fragilidades da sua poesia, não se considerando, de todo, poeta. No entanto, isso não o impediu, quanto a mim, de escrever um grande poema:

Só eu o sei, e porque mo disseste?
A minha responsabilidade agora é horrível.
Recebi o teu aviso, tínhamos o céu já preparado
com a noite que lhe competia e o seu absoluto de limpidez,
com o absoluto de um destino.
E havia estrelas novas, fabricadas de propósito,
como a alegria de uma criança a quem vestiram de preto.
Há Inverno à nossa volta com o frio da nossa humildade
e acendemos o lume para estarmos mais perto de nós.
E encomendou-se um pouco de neve para a celebração do início.
E bebeu-se um vinho intenso até à ternura por nós mesmos,
para a vida caber toda dentro da nossa comoção.
Tudo isto tinha que ver com o tencionado encantamento
e o que se combinou ser a esperança, a propósito de tu vires
e confirmares a esperança de que a trouxesses contigo.
No fundo da noite, há o silêncio dos homens,
que é de quem já disse tudo e é altura de tu dizeres.
Tudo isto é muito triste, não sei se fazes ideia.
Como é que eu vou poder agora explicar-lhes?
Vê-los erguer para mim os olhos necessitados,
todos junto da porta à espera que batas à porta?
Tudo fora já experimentado nas combinações possíveis,
não talvez de se ser feliz, mas de ser plausível pensá-lo.
Não, não vou agora dizer-lhes que nunca mais irás voltar,
que a fábula se esgotou e é altura de serem homens,
na desgraça miserável de serem maiores do que eles,
na pequena glória portátil de não serem menores do que eles.
Mas não, não vou dizer-lhes, estava eu bem arranjado.
Corriam-me à pedrada ou pregavam-me no madeiro,
que é o que te estão já preparando,
com pregos e martelo nos bolsos,
quando for a altura de esgotares, como os políticos, a esperança
que tinhas prometido,
e aguardarem até ao ano que a trouxesses outra vez.
Porque, enfim, sem esperança,
como diabo se há-de viver?
Estou só e muito enrascado
com o segredo horrível que me anunciaste.
Não o digo a ninguém. Perder a esperança, sim, mas devagar.
Aliás, mesmo a mim, que sou razoavelmente um homem forte,
é um bocado difícil de engolir
essa coisa trágica, nefanda e absolutamente despropositada
de nunca mais voltares, definitivamente,
nunca mais
nunca mais…

em Conta-Corrente 2, pp. 340-341.


Este poema também vem no livro Uma Esplanada Sobre o Mar, mas agora não recordo a página e não tenho comigo o livro. Ficam aqui os Ventilan para memória futura.



Sem comentários: