Vergílio Ferreira


Porque não abrimos uma falência brusca e comerciamos ainda com a vida num comércio de papéis. E é só a um instante lúcido e fugidio, que o papel se nos revela na sua inutilidade de papel. Findou em nós o trabalho das gerações e os nossos filhos não têm pais. Calaram-se em nós as últimas palavras de amor e os nossos filhos só conhecem a saturação do prazer. Acabou em nós todas as religiões e todas as anti-religiões, que eram religiões do avesso, e a nossa herança a transmitir é apenas o desespero ou o silêncio. Turbou-se em nós a certeza da justiça e a instituição que legámos é apenas a do cárcere, com o preso e o carcereiro em papéis alternados e permutáveis. Perdeu-se em nós a segurança do saber, e a tranquilidade dos sistemas oscilou em inquietação. Quebrou-se a firmeza do afirmar, e dela regressámos para antes de ser firme. Corroeu-se em nós a ideia de beleza e o que amealhámos para herança foi só quanto muito a beleza do horrível.
E no entanto, na humildade do desastre, uma flor nova irrompe — nova. Como a primeira flor ao vento sobre a face da Terra. Porque nós estamos vivos e toda a grandeza assim se nos mantém. Estamos vivos, sabemo-lo. O facho de luz que de nós se projecta, a nós regressa e ilumina — ilumina o que não desejamos destruir. Falo no centro da noite, é a hora que me coube, a minha hora.


em Invocação ao meu corpo, Venda Nova: Bertrand Editora, 3ª edição, 1994, pp. 17-18.

Sem comentários: