Um poema de Francisco Belard


Sobre um retrato


Nesta fotografia há mais verdade que no próprio
momento em que a deixaste pensativamente para o
mundo, crente na sua estática fidelidade
de imagem pela qual a paixão te sustinha,
como em certos diálogos frente a dissimulados
ou fictícios espelhos dos cafés mais antigos,
enquanto em volta tudo se dispunha para morrer,
na lenta arte da homenagem ao instante, trágico
e inocente, eterno anonimato de poeira
magnificado pelos inúmeros modos da escrita,
breve magia que o formula, volve em sonho já
póstumo, menos real do que a fotografia
tirada nessa tarde que havia de pôr termo
ao verão de sucessivos anos para sempre,
sob a luz lateral e a imagem no vidro,
rosto reflectido que o sol graduava,
integrando-o na terra numa tarde onde as coisas
a que déramos nome, todas as coisas já
se ordenavam tão pacificamente para a morte.



em Anuário de Poesia - Autores Não Publicados, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 63.