Um poema de Miguel Cardoso


e nisto mete-se o progresso
o progresso vai isto vai o progresso vai

(esta parte é para cantarolar:
o progresso também sai à noite
e mete música para se distrair)

isto vai

tecendo por vias
de envolvimento as vidas
mete-se pelas casa
vai-se metendo pelos pulmões
vai-se metendo pelas bocas
vai-se metendo pelas coxas distraídas
vai-se metendo pelas vizinhas

fora das horas de expediente

Mete-se comigo estou eu já junto à saída
e já com falta de ar vou 
às arrecuas
admirando o tecto onde gira o ar em jaula
e a fingir citar karl marx
a propósito da indústria têxtil

de como o vapor entrou pelos teares adentro
e os teares foram pela Inglaterra afora

de como navegou pelo rio Lualaba abaixo
mandando notícias de gente nua

para lá das cataratas
pobres almas

de como era uma vez
um dado quantum de fio
e depois era tecido
mais tarde seria tecido
vendido ao metro em hora de ponta

e de como o fio do vapor entrou pela  casa
e passou pela fábrica e por aí fora
até aos nervos

e civilizou-nos

aos que vivíamos turbulentos junto ao rio
de que agitávamos as águas

civilizou-nos até ao osso


em Os Engenhos Necessários, Lisboa: & etc, 2014, s/p.