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Sensação de intolerância à voz humana. Pouca paciência para conversa de circunstância. Tentar colocar uma cara apresentável para as funções do dia-a-dia. Estou como o tempo: chuvoso e cinzento. Continuo a trabalhar como meio de sustentar os meus caprichos pequeno-burgueses. O país afunda-se em conversas inócuas. Levantam-se punhos cerrados sem a coragem de os fazer cair sobre as cabeças de uns quantos. Gritam-se palavras de ordem que se convertem em lugares-comuns, chalaça, anedota. A geração que fez Abril diz que Abril não se cumpriu e depositam as esperanças nas gerações mais novas. Esquecem que as gerações mais novas só poderiam fazer cumprir Abril se Abril tivesse sido cumprido nelas. Mas a utopia ainda é possível, pensam. Só que a utopia é, ela própria, utopia. Nada mais. A maior parte dos “pensadores”, dos “fazedores-de-opinião” é quadro superior num lugar qualquer. Gente que fala da fome de barriga cheia. E depois há aqueles que, como eu, reclamam por tudo e por nada, mas que não dispensam a internet sem fios, o conforto do sofá. No Verão vamos até um destino balnear qualquer, conhecemos bons restaurantes. Sabemos comentar bons vinhos que compramos na grande superfície comercial que explora os seus trabalhadores e paga os impostos no estrangeiro. Nós, a geração “casa-dos-pais” que enche salas de espetáculos à custa da precariedade e dos recibos-verdes. Nós, a geração que se arrisca a deixar de ser.

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