Serém, 24 de Março


Foto: Poesia Incompleta

José Miguel Silva (1969) há muito que é um dos poetas mais reconhecidos da actual poesia portuguesa. Juntamente com Rui Pires Cabral, Manuel de Freitas, Jorge Gomes Miranda e Carlos Luís Bessa, tem publicado alguns dos mais interessantes livros de poesia dos últimos tempos. Os seus mais recentes poemas – aqueles contidos em Movimentos no Escuro (Relógio D'Água, 2005) e Erros Individuais (Relógio D'Água, 2010) – revelam uma crítica social muito vincada. José Miguel Silva não é complacente com a actual nova ordem mundial, nem com os homens que a promovem ou com o homem em geral. O murro no estômago parece ser a especialidade de José Miguel Silva, pois é isso que se sente quando se lêem alguns dos seus poemas. Contudo, em Serém, 24 de Março (Averno, 2011), nota-se uma pequena inflexão em relação aos livros anteriores, inflexão essa que apenas se limita, a meu ver, ao tom, sendo preservadas questões de forma e estilo. O livro está dividido em duas partes: 24 de Março e Serém.

Os primeiros poemas deste livro são poemas de amor. Que não reste a menor dúvida sobre isso: «Eu não tinha muita coisa e hoje tenho/a soma dos teus passos quando desces/a correr os nossos treze degraus e/me prometes: até logo.» (p. 10). É claro que não é fácil escrever poemas de amor sem alguma tendência para a lamechice, para o lugar-comum. José Miguel Silva sabe isso, mas no poema «Too Big to Fail» não consegue, sendo – quanto a mim – o poema menos conseguido desta primeira parte. O recurso a “imagens económicas” torna o poema demasiado óbvio e pouco interessante: «O meu único receio é que despertemos/a inveja dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,/e que Mercado, o monstruoso titã, decida/baixar para lixo o rating da nossa relação» (p. 18). Já o poema “Poupanças” é a antítese, pois consegue, através do recurso à actualidade – e de uma forma subtil –, remeter o leitor para as coisas simples, aquelas que realmente interessam: «O amor é assim, deixa o logro do mundo/a ganir à porta.» (p. 17).

Na segunda parte, o autor volta à carga. A História, a Economia, a Política, os Costumes – temas muito comuns na poesia de José Miguel Silva – são o mote. O sarcasmo, a ironia, um certo cinismo (à Grécia Antiga) são uma constante: «Uma casa junto ao Vouga,/rio de água suficiente,/onde apenas se mergulha/até à cintura, a pequena horta/de Virgílio, o amor robustecido/por nenhuma esperança/e tantos livros para ler/ — que desculpa vou agora dar/para não ser feliz?» (p. 27). Há uma espécie de tom bucólico em todos os poemas. A título de exemplo leia-se “Resistência Passiva”: «Uma vespa/vem do nada, perfeita e acesa,/enfia-se/num buraco de adobe, ninguém a viu;/desliza uma caneta sobre o papel amarelo./Do outro lado do rio ribomba o comboio,/num grito de gente moída, tão arcaico/e de lata como a felicidade; as abelhas/sabem que não foi um trovão, e isso/lhes basta, na tarde de jasmim em festa/e sol a pique.» (p. 32).

Serém, 24 de Março é, até hoje, o livro mais intimista de José Miguel Silva. Intimista no sentido que encerra em si o prazer das coisas simples, sem vergonha que elas sejam simples e, agora, de todos nós.


José Miguel Silva, Serém, 24 de Março, Lisboa: Averno, 2011, 36 pp.



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