De todos os novos autores de Língua Portuguesa, Gonçalo M. Tavares (1970) é aquele que melhor consolidou o seu lugar no panorama literário português. Em Portugal recebeu vários prémios, incluindo: Prémio LER/Millennium BCP (2004), Prémio José Saramago (2005) e Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores (2007). A nível internacional recebeu: o Prémio Portugal Telecom (Brasil, 2007), Prémio Internazionale Trieste (Itália, 2008), Prémio Belgrado Poesia (Sérvia, 2009). E foi ainda nomeado para o Prix Cévennes (França, 2009), que diz respeito ao prémio para o melhor romance europeu. Para além de inúmeros livros publicados num curto espaço de tempo (25 entre 2001 e 2009), que vão do romance e do conto à poesia, do ensaio ao teatro, Gonçalo M. Tavares cedo estabeleceu o seu percurso, isto é, o seu “programa” de escrita. Prova disso é a divisão feita pelo autor da sua obra publicada até à data: O Bairro, Canções, Enciclopédia, Bloom Books, Poesia, Estórias, Teatro, Investigações e O Reino. Foquemos a nossa atenção neste último.
O Reino é uma tetralogia composta por Um Homem: Klaus Klump (2003), A Máquina de Joseph Walser (2004), Jerusalém (2005) e Aprender a rezar na Era da Técnica (2007). É, sem dúvida alguma, a mais importante série de romances publicados nesta última década em Portugal. O seu tema central é o Mal e todos estão, de uma ou outra maneira, interligados entre si. Após a leitura de qualquer um destes quatro romances ficamos com a sensação de que a única coisa que nos resta é a ideia ou o problema que é levantado em cada livro. É por isso que podemos afirmar que Gonçalo M. Tavares é um escritor de ideias/problemas. Os seus romances são romances de ideias/problemas, se atendermos que essas “ideias/problemas” nos enfrentam, na medida em que são nítidos, reais, pois facilmente os podemos deslocar da obra. Por exemplo, Em Aprender a rezar na Era da Técnica o conflito existente é evidente: como viver num mundo em que a Moral, e as decisões morais, são ultrapassadas pela Técnica, e pelas decisões técnicas? Como “rezar” num mundo que viu o seu centro unificador alterado? A Técnica tomou conta dos dias que são nossos, tomou conta da nossa maneira de pensar e agir. É mais imoral mentir ou não conhecer o novo Windows Vista? O Divino deixou de fazer parte das nossas vidas. É mais importante que a água continue a correr nas torneiras: «Se os crentes, ou os próprios padres, fizessem greve isso seria bem menos significativo e visível numa cidade do que uma greve de canalizadores ou electricistas. A boa circulação da água ou da electricidade torna-se, para o dia-a-dia, bem mais indispensável do que a boa circulação do sopro divino.» (p. 217).
E os personagens? Que personagens encontramos neste Reino? Tal como em Dostoievski, os personagens de Gonçalo M. Tavares são apenas representantes das ideias/problemas que o romancista coloca em diálogo entre si. Gonçalo M. Tavares procura realizar a acção do romance através de personagens que podemos designar de “anormais”, pois só dessa maneira o autor consegue tornar verosímil a exposição da sua problemática. Um bom exemplo é Lenz Buchmann, personagem central do citado Aprender a Rezar na Era da Técnica. Lenz Buchmann é um inadaptado dos dias em que vive, dias pobres e fracos. Acredita na Força. É um homem da Era da Técnica, desempenha uma profissão técnica (é cirurgião) e pouca importância dá à espiritualidade, à moral, que vê como elementos perturbadores de uma Sociedade que se quer forte. Mas é também um homem dominado pela figura do Pai (que nunca chega a “matar”), principal responsável pela Força de Lenz: «- Nesta casa o medo é ilegal» (p. 91). Um pai que se suicida aos 58 anos, no momento em que começa a sentir o seu declínio físico. O corpo e a ideia de corpo (um corpo que é limitado, que a determinada altura deixa de cumprir a sua função) estão muito presentes nesta tetralogia: Joseph Walser, em A Máquina de Joseph Walser, vê a sua vida completamente alterada devido a um acidente de trabalho – é-lhe amputada uma mão; Mylia, em Jerusalém, é internada num hospício devido a uma doença mental.
Os romances de Gonçalo M. Tavares lançam um olhar sombrio sobre a natureza humana, sobre a sua condição. E é essa uma das mais-valias da escrita de Gonçalo M. Tavares: confrontar-nos com os fantasmas que constantemente recusamos aceitar.
(texto publicado no suplemento literário Correio das Artes, Agosto 2010, Ano LXI, nº. 08, do jornal A União, João Pessoa, Brasil)
4 comentários:
caro manuel,
reconheço que o trabalho do gmt é de qualidade e em portugal não tem surgido assim alguém que, percorrendo vários géneros, nos oferece uma obra a seguir (uns melhores do que outros, embora não conheça a poesia dele). mas igualmente me custa toda esta eleição - que muito se deveu à força, a uma certa imposição, dos críticos - quando podemos encontrar na sua escrita "toda a fonte da sua originalidade", o recurso constante a esquemas que se podem encontrar em borges, kafka, beckett, como se, para portugal, não existisse história literária e o que ele nos apresenta fosse inteiramente novo (sabendo, é certo, que em portugal ninguém ainda se tinha munido desses recursos). às vezes até me senti enganado, mas fui continuando a lê-lo e a lê-lo - gostava de saber, por exemplo, o que diria um leitor que não conhecêsse as personagens do "bairro", porque eu não consigo deixar de fazer pontes com os textos dos "moradores".
lembro-me de, quando começaram a surgir os livros do gmt, me perguntar porque raio é que um rui nunes ou uma maria gabriela llansol não mereceram uma ovação como a dele, quando a destes é realmente original e nova (parece-me).
todavia, bom texto o teu. um abraço
«Os romances de Gonçalo M. Tavares lançam um olhar sombrio sobre a natureza humana, sobre a sua condição. E é essa uma das mais-valias da escrita de Gonçalo M. Tavares: confrontar-nos com os fantasmas que constantemente recusamos aceitar.»
E basta, já dá muito que contar
os personagens de Gonçalo M. Tavares são apenas representantes das ideias/problemas que o romancista coloca em diálogo entre si. Gonçalo M. Tavares procura realizar a acção do romance através de personagens que podemos designar de “anormais”, pois só dessa maneira o autor consegue tornar verosímil a exposição da sua problemática.
É impressão minha ou há aqui um inicio de uma alfinetada que o critico não teve vontade de concretizar?
caro benjamim machado: não conheço o suficiente a obra de rui nunes e de maria grabiela llansol para dizer que são originais. afinal, o que é ser original nos dias de hoje?
caro jorge: sem dúvida.
caro anónimo: muito obrigado pelo seu mui precioso comentário. no entanto, respondo-lhe: não há qualquer intenção de crítica literári (ou de qualquer outro tipo) com este texto, muito menos dar alfinetadas. volte sempre. cumprimentos
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