Um poema de António Cabrita


Proximidade Aristotélica

Não depende de haver o corpo.
Vive-se perfeitamente sem dois
ou três dedos: segurar um cigarro,
um selo, a perna da galinha,
exige um mínimo de dons.
E, contudo, sem o balancear
dos teus pulsos que desempenam
a janela de guilhotina ou sopesam
na faca a beringela
podiam os anos saldar-se
que enferrujavam no arame.

Vejo a força da estação abater-se
sobre as escadas em caracol
das traseiras da embaixada, onde
há uma semana se disponibiliza
um catálogo de rios. Medito
toda a manhã nesse transbordo triste
e embora o vento que deposita
um mapa na mão direita arroste
um profundo debilitamento
ao coração recomeço a confiar –

estas coisas não devem assustar:
a luz, sabe-se, morde como um rato,
mas quando a pedra despeja as fontes
e o sangue faz subir o preço
da rapina está o coração
de há muito enxertado de partidas.

em «Em Quanto Tempo Arde o Eucalipto» inserido em Arte Negra, Lisboa: Fenda, 1ª edição, 2000, pp. 62-63.

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