EXUMAR O CADÁVER
por Paulo da Costa Domingos
Após a saída a público da minha tradução das líricas de Ian Curtis para os Joy Division, em 1983, manifestações de agrado ou desagrado surgiram na imprensa periódica ou foram sendo dirigidas ao editor da Assírio & Alvim, à época o já falecido Hermínio Monteiro. Entre elas – solicitando-me este um tal serviço de pós-venda –, a resposta a uma leitora do Porto pode servir de modelo e exemplo na “homenagem” que hoje me pede o Manuel A. Domingos. Passemos, pois, à matéria em estudo.
Resposta à dita carta da leitora (a 5 de Julho, 1989, ano da, julgo eu, 3.ª edição do livro), indagante de pormenores acerca da vida menos artística de Curtis e curiosa por entender o que me teria levado a acrescentar, em anexo à tradução, uma passagem de Platão genericamente conhecida pela «alegoria da caverna»:
Cara leitora [C. G.]
É na qualidade de tradutor da obra Ian Curtis / Joy Division que venho prestar-lhe alguns esclarecimentos, a pedido da Assírio & Alvim.
Comecemos pelo fim: a alegoria da caverna.
Curtis, como todos os grandes poetas, tomou os seus legítimos desejos de um mundo diferente do nosso pela realidade negativa desse mundo apocalíptico. Tomou o espírito pela matéria, a esperança pelo materialismo mais grosseiro que o rodeava. Só que ao confrontar esse mundo ideal, equívoco, de sombras (ou iluminações privadas), com essa mesquinha realidade circundante de um Reino Unido tatcheriano, onde o capitalismo e a prepotência legitimada por sufrágio imperam vergando a vontade individual, oscilou pois entre a explosão libertária (que tivera nos Sex Pistols e nos Clash o retrato fiel) e a redisciplinarização neo-nazi das pulsões vitais (tal como Mussolini, um homem que iniciou a sua carreira política nos grupos anarquistas...). Assim dividido, com o acréscimo dilacerante da sua doença epiléptica, não seria fácil atravessar a amargura de um quotidiano cinzento (em Manchester), ameaçado pela iminência do fim nuclear, poluído desde logo pelas fugas radioactivas numa central (este caso, apesar de mascarado na imprensa, chegou ao conhecimento da Europa continental). Fácil não seria ainda sobreviver friamente às pústulas que por todo o lado, à volta dele – o Sida já começava a abrir (um vírus com sérias hipóteses de ter sido potenciado laboratorialmente para fins de guerra bioquímica) –, mesmo que somente como testemunha ocular da catástrofe que se avizinhava então, em 1980. De facto, a contra-informação que tomou de assalto a comunicação social (e repare que gravar discos é entrar nesse circuito dos mass media), por todo o mundo, só nos traz a face menos putrefacta do horror, e quando de todo em todo já não é possível omiti-lo ao público. Neste sentido, continuar a cantar cançõezinhas para os adolescentes abanarem as tolas nos bares da noite era o mesmo que ser cúmplice da representação falsa que desfila nos muros das nossas cabeças.
Na impossibilidade de alterar o curso dos acontecimentos, na frustração humilhante da Revolução hoje impossível e na recusa em se decidir por um dos partidos “salvadores” que oportunamente sempre aparecem cheios de promessas – coisa que o resto da banda resolveu optando por ligarem-se ao neo-nazismo (New Order = Ordem Nova) –, Ian Curtis assumiu em absoluto o seu destino de Homem, da pior forma: a fuga radical por via do suicídio.
Quanto a esta morte, o resto da banda andou naturalmente desnorteado uns tempos (e não vou dizer que só no plano criativo, admitamos que os fascistas também têm alguns poucos sentimentos), coisa que o primeiro álbum, Movement, reflecte, num nervosismo epiléptico ao nível da estrutura rítmica (celebrando o poeta falecido) e ao nível das vocalizações (mimando a dicção melódica de Curtis, embora menos agressiva). Posteriormente, tudo neles se transformou num pastel comercial dirigido ao consumo imbecil das pistas de dança. Ficou ainda, como autêntica música para funeral, um máxi-single (anterior ao primeiro álbum) que venera os respeitos devidos ao desaparecido: Ceremony / In a Lonely Place (a edição da Assírio & Alvim inclui).
Claro que se afigura extremamente difícil, senão impossível, ter a pálida imagem de quem foi esse malogrado cantor e poeta (ou vice-versa). Não há biografia(s) do indivíduo; o que há são monografias acerca do grupo, e nem sequer enquanto grupo de seres humanos, apenas enquanto produtores de lucros para as casas editoras. Mas os discos que ficaram registados são em parte contagiantes, quase aí visualizamos o que o uivo da garganta do homem pretendia ilustrar. Mais assustado se fica quando o vemos em acção num vídeo editado no Reino Unido, Here Are the Young Men ! Enigma, mistério, mito, em tudo quanto queira sair desse vicioso círculo.
Penso que acabei por responder a alguns dos seus quesitos de fã. [...]
[a] Paulo da Costa Domingos
Afigura-se-me também interessante, nesta “homenagem”, transcrever aqui a minha carta ao editor da Assírio & Alvim, mais tarde, à data de 30 de Agosto, 1995, em resposta a um pedido de eventual revisão dessa tradução, destinada à respectiva reedição do livro.
Caro Hermínio Monteiro
Julgo azado o momento de me desvincular – quanto historicamente possível – de um autor, Ian Curtis, que deu notório contributo para o ressurgimento de ideias nazis e rácicas.
Agradeço-te a limpidez do convite, que declino, para rever a minha antiga tradução da respectiva lírica e, por inerência, a oportunidade de ressalvar o meu genuíno, mas perigosíssimo, sentimento de tolerância cultural para com essa franja da dominação autoritária.
De 1983 para cá, muita água suja correu no mundo; podemos mesmo crer que já não faltará muito para a saturação terminal do ambiente. Eu próprio terei modificado o meu dissimulado estilo de abordagem ante os senhores das sombras na caverna... Deixou, por conseguinte, de existir qualquer argumento, estratégico ou outro, para confraternizar friamente na pocilga da direita.
[a] Paulo da Costa Domingos
Escusado será dizer que a Assírio & Alvim contratou novo tradutor para abordar de raiz a obra de Ian Curtis, não se fazendo rogada em prosseguir na exploração mercantil do ovo da serpente. Hoje são as ideias da padralhada o que domina o catálogo dessa casa editora, sob a égide de um papa (ex-)nazi.
Após a saída a público da minha tradução das líricas de Ian Curtis para os Joy Division, em 1983, manifestações de agrado ou desagrado surgiram na imprensa periódica ou foram sendo dirigidas ao editor da Assírio & Alvim, à época o já falecido Hermínio Monteiro. Entre elas – solicitando-me este um tal serviço de pós-venda –, a resposta a uma leitora do Porto pode servir de modelo e exemplo na “homenagem” que hoje me pede o Manuel A. Domingos. Passemos, pois, à matéria em estudo.
Resposta à dita carta da leitora (a 5 de Julho, 1989, ano da, julgo eu, 3.ª edição do livro), indagante de pormenores acerca da vida menos artística de Curtis e curiosa por entender o que me teria levado a acrescentar, em anexo à tradução, uma passagem de Platão genericamente conhecida pela «alegoria da caverna»:
Cara leitora [C. G.]
É na qualidade de tradutor da obra Ian Curtis / Joy Division que venho prestar-lhe alguns esclarecimentos, a pedido da Assírio & Alvim.
Comecemos pelo fim: a alegoria da caverna.
Curtis, como todos os grandes poetas, tomou os seus legítimos desejos de um mundo diferente do nosso pela realidade negativa desse mundo apocalíptico. Tomou o espírito pela matéria, a esperança pelo materialismo mais grosseiro que o rodeava. Só que ao confrontar esse mundo ideal, equívoco, de sombras (ou iluminações privadas), com essa mesquinha realidade circundante de um Reino Unido tatcheriano, onde o capitalismo e a prepotência legitimada por sufrágio imperam vergando a vontade individual, oscilou pois entre a explosão libertária (que tivera nos Sex Pistols e nos Clash o retrato fiel) e a redisciplinarização neo-nazi das pulsões vitais (tal como Mussolini, um homem que iniciou a sua carreira política nos grupos anarquistas...). Assim dividido, com o acréscimo dilacerante da sua doença epiléptica, não seria fácil atravessar a amargura de um quotidiano cinzento (em Manchester), ameaçado pela iminência do fim nuclear, poluído desde logo pelas fugas radioactivas numa central (este caso, apesar de mascarado na imprensa, chegou ao conhecimento da Europa continental). Fácil não seria ainda sobreviver friamente às pústulas que por todo o lado, à volta dele – o Sida já começava a abrir (um vírus com sérias hipóteses de ter sido potenciado laboratorialmente para fins de guerra bioquímica) –, mesmo que somente como testemunha ocular da catástrofe que se avizinhava então, em 1980. De facto, a contra-informação que tomou de assalto a comunicação social (e repare que gravar discos é entrar nesse circuito dos mass media), por todo o mundo, só nos traz a face menos putrefacta do horror, e quando de todo em todo já não é possível omiti-lo ao público. Neste sentido, continuar a cantar cançõezinhas para os adolescentes abanarem as tolas nos bares da noite era o mesmo que ser cúmplice da representação falsa que desfila nos muros das nossas cabeças.
Na impossibilidade de alterar o curso dos acontecimentos, na frustração humilhante da Revolução hoje impossível e na recusa em se decidir por um dos partidos “salvadores” que oportunamente sempre aparecem cheios de promessas – coisa que o resto da banda resolveu optando por ligarem-se ao neo-nazismo (New Order = Ordem Nova) –, Ian Curtis assumiu em absoluto o seu destino de Homem, da pior forma: a fuga radical por via do suicídio.
Quanto a esta morte, o resto da banda andou naturalmente desnorteado uns tempos (e não vou dizer que só no plano criativo, admitamos que os fascistas também têm alguns poucos sentimentos), coisa que o primeiro álbum, Movement, reflecte, num nervosismo epiléptico ao nível da estrutura rítmica (celebrando o poeta falecido) e ao nível das vocalizações (mimando a dicção melódica de Curtis, embora menos agressiva). Posteriormente, tudo neles se transformou num pastel comercial dirigido ao consumo imbecil das pistas de dança. Ficou ainda, como autêntica música para funeral, um máxi-single (anterior ao primeiro álbum) que venera os respeitos devidos ao desaparecido: Ceremony / In a Lonely Place (a edição da Assírio & Alvim inclui).
Claro que se afigura extremamente difícil, senão impossível, ter a pálida imagem de quem foi esse malogrado cantor e poeta (ou vice-versa). Não há biografia(s) do indivíduo; o que há são monografias acerca do grupo, e nem sequer enquanto grupo de seres humanos, apenas enquanto produtores de lucros para as casas editoras. Mas os discos que ficaram registados são em parte contagiantes, quase aí visualizamos o que o uivo da garganta do homem pretendia ilustrar. Mais assustado se fica quando o vemos em acção num vídeo editado no Reino Unido, Here Are the Young Men ! Enigma, mistério, mito, em tudo quanto queira sair desse vicioso círculo.
Penso que acabei por responder a alguns dos seus quesitos de fã. [...]
[a] Paulo da Costa Domingos
Afigura-se-me também interessante, nesta “homenagem”, transcrever aqui a minha carta ao editor da Assírio & Alvim, mais tarde, à data de 30 de Agosto, 1995, em resposta a um pedido de eventual revisão dessa tradução, destinada à respectiva reedição do livro.
Caro Hermínio Monteiro
Julgo azado o momento de me desvincular – quanto historicamente possível – de um autor, Ian Curtis, que deu notório contributo para o ressurgimento de ideias nazis e rácicas.
Agradeço-te a limpidez do convite, que declino, para rever a minha antiga tradução da respectiva lírica e, por inerência, a oportunidade de ressalvar o meu genuíno, mas perigosíssimo, sentimento de tolerância cultural para com essa franja da dominação autoritária.
De 1983 para cá, muita água suja correu no mundo; podemos mesmo crer que já não faltará muito para a saturação terminal do ambiente. Eu próprio terei modificado o meu dissimulado estilo de abordagem ante os senhores das sombras na caverna... Deixou, por conseguinte, de existir qualquer argumento, estratégico ou outro, para confraternizar friamente na pocilga da direita.
[a] Paulo da Costa Domingos
Escusado será dizer que a Assírio & Alvim contratou novo tradutor para abordar de raiz a obra de Ian Curtis, não se fazendo rogada em prosseguir na exploração mercantil do ovo da serpente. Hoje são as ideias da padralhada o que domina o catálogo dessa casa editora, sob a égide de um papa (ex-)nazi.
5 comentários:
Excelente contributo. Eu tenho a edição com a tradução do Paulo da Costa Domingos e não a troco por nenhuma outra.
Sim, senhor, grande contributo vindo de alguém que editou Céline ou esse panfleto de referência da paranóia anti-semita, "Imposturas Intelectuais". De referência, meu caro, de referência.
Estou-me a cagar para anónimos e não editei nenhum «panfleto de referência da paranóia anti-semita, "Imposturas Intelectuais"».
Há azar?
Paulo da Costa Domingos
Hà
B.
Amanhã ensino-te as outras letras do alfabeto.
Paulo da Costa Domingos
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