por Jorge Vaz Nande
Daqui a uma semana já cá não estou. Se a nuvem de cinzas islandesas o permitir – “kiss my ash”, ria-me com um amigo meu em Abril, quando o cabrão do Eyjafjallajökull ainda só incomodava os outros -, hei-de estar no Brasil, essa terra de calor, etanol de cana e cus que abanam. Quando era novo, não gostava do Brasil e não conseguia perceber a atracção por aquela terra por muita telenovela que visse, mesmo que por lá andasse a cara de bolacha da Adriana Esteves. Também me recordo muito distintamente de não gostar de bifes, que eram duros; de queijo, que era azedo; e de mel, que era viscoso. Com o tempo isso veio a mudar e hoje estou muito longe de torcer o nariz a um naco da vazia, precedido por um queijo de cabra e seguido por um fio de mel escuro do cortiço do meu tio a regar um requeijão. Se a isso se somar a Adriana Lima a servir-me caipirinhas, tanto melhor. O mesmo se pode dizer quando, na adolescência, ouvia os Nirvana e o Hendrix e blues e Primus e execrava tudo o que me pudesse soar a mais de três acordes e a sintetizador, tirando o Zappa e Beck. Jeff Buckley? The Smiths? Joy Division? Para dor, já bastava espremer borbulhas. Tinha tanta paciência para eles como falta de vontade de fazer mosh em Vilar de Mouros em 1996. Eu e, queria acreditar, toda a minha geração tínhamos sido criados para partir uma guitarra em palco. A nossa missão era destruir o mundo por nos apetecer e os outros que aí viessem que o voltassem a pôr igual, se quisessem. O feedback gritava a dor e fazia-a explodir em violência. Mas as pessoas vão crescendo e chega-se àquela altura em que se corta o cabelo porque se percebe que ele anda a cair por todo o lado e precisa de muita atenção para não atormentar ainda mais as orelhas. Nesse momento, a atitude de “isto sou eu a afirmar que não me importo com o meu aspecto porque não é isso que conta” é uma mentira tão grande que até Sócrates a diria no Parlamento. Por essa mesma altura, começa-se a sacar mp3 presentes e passados e a perceber melhor o que aconteceu, a apreciar coisas impensáveis como o Homem na Cidade do Carlos do Carmo, José Mário Branco, Chico Buarque. E, claro, Jeff Buckley e Joy Division. A viragem começa a ser preparada aos 16 anos com os Radiohead, mas o imprescindível é criar a disponibilidade emocional para aceitar o “douleur de vivre” que já se ia intuindo nos anos 80, quando se apanhava relances da Inglaterra escura da senhora Thatcher. Começa aí o final da fase heróica do indivíduo, com o medrar da semente da dúvida e o cavar interno de um poço escuro cheio de fantasmas, dúvidas e frustrações. Começar a ouvir os Joy Division nesse momento faz todo o sentido. Ian Curtis não dançava por estar contente, mas por ser doente. Não dançava para ser sensual ou para puxar ao divertimento, mas porque assim exigia o desespero a um corpo apanhado numa vida sem saída. Esse corpo era o seu espectáculo. É por isso que no meu poema “A Mentira”, que costumo dizer em slams, digo que mataríamos o Ian Curtis outra vez se isso significasse o fim, o silêncio, que parava. Depois de terem feito a música da dor de um homem adulto, os Joy Division fizeram-se New Order e viraram-se para as pistas de dança, porque o tempo dessa música acabou com a morte do vocalista. Mas, sempre que alguém corta o cabelo porque ele lhe incomoda as orelhas, continua o tempo dessa dor. E, como não podemos matar Curtis outra vez para o interromper, continuamos a ouvi-los. Que mais podemos fazer?
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