Licht und Blindheit (3)


Um quarto que seja frio
por Miguel Marques


Comprei o meu primeiro disco dos Joy Division numa altura da minha vida em que não havia dinheiro para comprar discos. Aliás, comprei esse disco numa altura da minha vida em que não havia dinheiro para comprar quase nada para além das senhas do almoço na cantina e um ou outro saco de gomas aviados num quiosque a caminho da escola. Se a memória não me falha, tratava-se de uma colectânea da qual retinha apenas uma música de ouvido. Uma música que falava de quartos frios e da impossibilidade do amor entre dois comuns mortais. Por essa idade passava metade do meu tempo sozinho (a outra despendia-a a dormir, igualmente sozinho) a rabiscar poemas num caderno ou a arranhar acordes à guitarra, e tinha começado a tentar fumar sem me pôr a bolçar aos arrancos, julgando que, desse modo, conseguiria adquirir a pose exigida a quem aspira à genialidade suburbana. Comprei a bolacha do CD (à época estávamos longe de ouvir falar em MP3 ou de aspiradores com filtro de água) numa loja na Amadora ao preço de vinte empadões na cantina, para o oferecer a uma amiga pela qual me havia perdido de amores. A criatura (nada perdida pelos meus acordes ou pelos meus poemas) convencera-me, do cimo dos seus canudos louros, de que o vocalista esgalhava uns versos quiçá melhores que os meus, além de se ter suicidado muito novo com a corda do estendal da roupa, o que para mim equivalia, sem grandes cedências, a selo de qualidade garantida. A par disto, a benesse do dito rapazinho se referir a assuntos que me eram mui caros, tais como os quartos frios, as frequências de rádio, o temor da loucura, a incompreensão por parte do mundo, o fracasso da existência, a inutilidade do ser, entre outros quejandos. Havia uma fotografia com que ela forrava os manuais de Português A em que ele aparecia a fumar um cigarro sem se pôr bolçar aos arrancos, e uma outra onde figurava cabisbaixo, abancado na esquina de uma mala, e recordo-me de ela dizer que aquele era o tipo de homem que mais apreciava: um homem com ar triste. Eu sabia que também era um triste, mas também sabia que a minha tristeza era ligeiramente diferente daquela que se descortinava no rosto do vocalista da tal banda. Depois ela veio com a adenda de que o género que a banda praticava era aquilo que designava por “música inteligente”. Eu também desconfiava que pertencia ao género “inteligente”, no sentido em que seria possível ingressar na faculdade com uma média redonda, não tanto no de alcançar sucesso ao formar uma banda que atraísse as atenções da fauna circundante. Antes de a presentear com a recolha de êxitos “inteligentes” da tal banda que, para mim, consistia em pouco mais que um refrão trauteável debaixo do chuveiro, gravei o conteúdo do CD para uma cassete TDK, de modo a inteirar-me do quociente de inteligência dos cérebros que lhe decoravam os manuais de Português. Recordo-me de certa tarde lhe ter tocado à campainha e de ela não responder pelos buraquinhos do intercomunicador. Recordo-me também de escutar a música sobre quartos frios a bradar em altos decibéis, provindos da janela de sua casa. Recordo-me de ela acudir à janela e cochichar-me que talvez não fosse o melhor momento para subir e meter a conversa em dia. Recordo-me ainda de umas mãos surgirem por detrás dela e lhe enlaçarem a barriga, e de divisar o meu melhor amigo com um sorriso “inteligente” estampado na cara, a assobiar para dentro o verso da tal canção. Recordo-me de ter ficado sem palavras. Ainda hoje associo esse estado de ficar sem palavras a uma baixa de temperatura. Recordo-me de ter ido para casa a passo lento e me ter cagado bem para o quiosque das gomas. Depois, de pôr a cassete a rodar nos caroços da aparelhagem e de ouvir a música até à exaustão, puxando a fita para trás de cada vez que terminava, como se pretendesse recuar no tempo. Recordo-me de estar no meu quarto, sozinho e sem dormir. Recordo-me de olhar lá para fora, para a varanda, e de distinguir a corda de estender a roupa com umas cuecas do meu padrasto penduradas, a ondularem ao sabor do vento. Recordo-me de ter pensado que aquela era bem capaz de se tornar na minha banda preferida. E tornou. Mas só muitas canções depois me apercebi do quão quente, afinal, era o interior do meu quarto.

Sem comentários: