Atmosphere
por Beatriz Hierro Lopes
Nenhum deles era nascido quando ele morreu. Nada daquilo fora vivido no momento em que fora feito. Antes herdado, como se herdam as músicas dos irmãos mais velhos, de sabor amargo. Especialmente aquela. Tão amarga na boca como a madrugada, dissera o rapaz novo. O responsável pela casa, a quem também o irmão lha mostrara.
A comparação nada tivera de metafórico, ali sentados, lá fora, no fim da noite. Uma das raparigas do grupo confessara que nunca tinha visto o sol a nascer. Na altura, aquecidos pelo vinho, parecera-lhes bem deixarem-se ficar à espera do dia. Pouco se via ao seu redor, os campos de vinha sucediam-se como degraus, o candeeiro no alpendre, por detrás deles, iluminava-lhes as sombras que se uniam à escuridão das vinhas. Cadavéricas, esqueletos negros da terra. Tudo o que viam à sua frente.
Tinham menos de vinte anos e nenhuma memória dele. Dos heróis dos seus irmãos, guardara-se a referência a um ou dois feitos, a morte principalmente, como se a forma com que se morre definisse a forma como se vivera. Não souberam bem porquê, mas a música de que falavam, a música herdada, parecia mover-se com o vento entre o corpo da vinha.
Talvez não fosse possível naquele momento cantá-la (Não a cantariam). Ou pensá-la. Suspensa entre a névoa, que os primeiros raios de sol revelaram, circundava as vinhas num movimento quase estático quase imperceptível ao olhar, mas ainda assim visível. Um dos rapazes, o que ali vivera, contara que, quando era pequeno, gostava de acordar ao amanhecer, correr entre elas, galgando a irregularidade dos degraus. Dissera que o vento, o frio húmido contra a garganta, contra o peito, lhe lembrava o som da sua respiração. Como se fosse possível esquecê-la. Que tudo ficara submerso, a musculatura em declive, a respiração feroz e azul do corpo.
A rapariga que começara a ver o sol a nascer pedira-lhe que repetisse. Que corresse outra vez. Porque lhe parecera bonito – quero ver-te. Ninguém se levantara mas todos insistiam. O rapaz que acabara a garrafa de vinho fez o que lhe pediram, deixando-os para trás. Ele correndo e eles parados a olhá-lo. Fora, todo aquele movimento, uma estranha forma de suspensão. À música dos seus irmãos mais velhos - aquela: especial irrepetível -, juntaram ali a imagem: alguém que, à sua frente, corre ao amanhecer entre a neblina da vinha. Reconhecendo naquela suspensão a sua.
por Beatriz Hierro Lopes
Nenhum deles era nascido quando ele morreu. Nada daquilo fora vivido no momento em que fora feito. Antes herdado, como se herdam as músicas dos irmãos mais velhos, de sabor amargo. Especialmente aquela. Tão amarga na boca como a madrugada, dissera o rapaz novo. O responsável pela casa, a quem também o irmão lha mostrara.
A comparação nada tivera de metafórico, ali sentados, lá fora, no fim da noite. Uma das raparigas do grupo confessara que nunca tinha visto o sol a nascer. Na altura, aquecidos pelo vinho, parecera-lhes bem deixarem-se ficar à espera do dia. Pouco se via ao seu redor, os campos de vinha sucediam-se como degraus, o candeeiro no alpendre, por detrás deles, iluminava-lhes as sombras que se uniam à escuridão das vinhas. Cadavéricas, esqueletos negros da terra. Tudo o que viam à sua frente.
Tinham menos de vinte anos e nenhuma memória dele. Dos heróis dos seus irmãos, guardara-se a referência a um ou dois feitos, a morte principalmente, como se a forma com que se morre definisse a forma como se vivera. Não souberam bem porquê, mas a música de que falavam, a música herdada, parecia mover-se com o vento entre o corpo da vinha.
Talvez não fosse possível naquele momento cantá-la (Não a cantariam). Ou pensá-la. Suspensa entre a névoa, que os primeiros raios de sol revelaram, circundava as vinhas num movimento quase estático quase imperceptível ao olhar, mas ainda assim visível. Um dos rapazes, o que ali vivera, contara que, quando era pequeno, gostava de acordar ao amanhecer, correr entre elas, galgando a irregularidade dos degraus. Dissera que o vento, o frio húmido contra a garganta, contra o peito, lhe lembrava o som da sua respiração. Como se fosse possível esquecê-la. Que tudo ficara submerso, a musculatura em declive, a respiração feroz e azul do corpo.
A rapariga que começara a ver o sol a nascer pedira-lhe que repetisse. Que corresse outra vez. Porque lhe parecera bonito – quero ver-te. Ninguém se levantara mas todos insistiam. O rapaz que acabara a garrafa de vinho fez o que lhe pediram, deixando-os para trás. Ele correndo e eles parados a olhá-lo. Fora, todo aquele movimento, uma estranha forma de suspensão. À música dos seus irmãos mais velhos - aquela: especial irrepetível -, juntaram ali a imagem: alguém que, à sua frente, corre ao amanhecer entre a neblina da vinha. Reconhecendo naquela suspensão a sua.
(Não, não a cantariam.)
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