Licht und Blindheit (13)

Luz. Trevas. Impotência.
por André Moura e Cunha

Contacto
Fim dos anos 80. Vivia nas guitarras estridentes de Joey Santiago, nos gritos animalescos de Iggy, nas ondas emplumadas de Bowie, na voz cavernosa de Murphy – curioso trio este, a iguana, o camaleão e o vampiro –, e ao lado, como meio libertador da overdose sonora dos incessantemente repetidos, repousava o quarteto de Manchester, usado mas não abusado, ouvido por letargia, porém não cravado na memória de uma mente febril pré-universitária. Talvez o Substance, compilação de 1988. Foi S. que me iniciou no mundo sepulcral da voz cava de Ian, das batidas hipnóticas e continuamente repetidas numa caixa de ritmos de Morris, dos abalos sísmicos provindos do baixo de Hook, da melodia – foram sempre acordes melódicos – que se soltava da guitarra de Sumner: “Transmission”, “Passover”, “Dead Souls”, “She’s Lost Control”, “Leaders of Men”, “Shadowplay”, “Novelty” e “A Means to an End”; mesmo antes de “Komakino”, “Love Will Tear Us Apart” ou de “Atmosphere”. Mas vão sendo todas repetidamente queimadas pelo laser a pulsar entre “zeros” e “uns”. Foi S. na sua voz carente, doce e afectada, entre afagos e efervescências sensuais, que me levou a trocar o pançudo Charles Thompson por Curtis no pedestal cimeiro dos veneráveis. Descíamos as escadas daquele bar escavado no subsolo da capital transmontana, mas já antes corríamos febrilmente rumo à boca do monstro que soltava os sons de um baixo gótico cuja reverberação sentíamos cá fora sob os nossos pés, que lá dentro parecia ressumar – lágrimas espessas de suor delirantes – daquelas paredes graníticas cavernosas: BarBaros, foi esse o local da epifania. Entre vapores alcoólicos e gestos desregrados de lubricidade, fui aluno competente da história narrada em surdina sobre os factos que conduziram o quarteto para o abismo e para loucura necrófila que se lhe seguiu, deturpando comportamentos, ocultando factos, gerando patranhas pós-modernas, deificando excessos que não eram tolerados, pela sede mercantilista que se comprazia em vender os miasmas da morte em pacotes factícios.

Ingestão
Num artigo publicado por Jon Savage no The Guardian em 2008 por esta ocasião de hábito rememorativo, todavia a propósito da estreia do documentário Joy Division escrito pelo próprio e realizado por Grant Gee, o escritor, jornalista e musicógrafo britânico faz uma dissecação do interior de Curtis e dos seus estados de alma, concluindo pelo seu medo primordial do isolamento, que ressalta das letras febrilmente marcadas a maiúsculas, entre a luz ofuscante e o desespero sombrio, na dialéctica luz e trevas, que se sintetiza na urgência em sentir o toque e o calor humanos. Em suma, apesar da miríade de perspectivas que cada fã tem das atribulações do sujeito idolatrado, sempre entendi que foi num violento sentimento de impotência que a vida e o tempo de Ian se fizeram curtos, que de alguma forma apura e explicita todos os medos, apreensões e enfados, ou talvez, rivalize com a dilacerantemente percebida auto-estima nula. O impulso corajoso da emancipação prematura, foi-se aniquilado com a necessária obediência a um ritual para pôr uma máquina a funcionar, que se foi montando à volta dele à porta de uma sala de espectáculos fechada que acabara de receber o Camaleão. Ian era o fulcro, a mola impulsionadora, o vórtice aglutinador do único caminho para o sucesso, e ele sentia-o como um fardo que pesava toneladas, que o arremetia para as trevas de um poço húmido e profundo – afinal, de onde partiu toda a engenharia do processo criativo. Dando um pequeno salto histórico. Desencadeou-se a sua epilepsia. A vizinhança da digressão para os Estados Unidos foi o catalisador de um cadinho efervescente de circunstâncias interiores rumo à catástrofe. A impotência perante um futuro antecipado como esmagador debaixo das luzes da ribalta, a conciliação entre a vida provinciana e anódina com Deborah e Natalie (n. 1979) e o arrojo de Annik, entre o prazer de compor e sobretudo de escrever, e a entendida função de pedra angular de uma entourage que, sem ele, se desfaria como um castelo de cartas – como, aliás, se veio a provar: Hook, Morris e Sumner, mas também Gretton e Wilson, e por fim a própria Annik. Os Joy Division esfumaram-se numa nuvem de cinzas – tão bem fotografada por Corbijn no teledisco apocalíptico de “Atmosphere” (1988), como no biopic Control (2007) –, e com o seu fim terminou para sempre um sub-estilo que não era pré-, pós-, ex-, proto- (juntem-se-lhes os prefixos que quiserem): pop, rock, punk, gótico, new wave, electrónico, garage, e por aí fora. Depois da digressão continental nos primeiros meses de Janeiro de 1980, veio o ritmo inexorável do estúdio. Concluiu-se o segundo e último álbum do efémero grupo: Closer. O mais arcano, inexpugnável e transcendentalmente inacessível a não iniciados pela, talvez única, corrente esotérica que nasceu de geração espontânea e cujo grão-mestre morreu no momento em que aquela se erigiu no vento de Macclesfield e se difundiu pelo mundo através das ondas etéreas de uma sonoridade irrepetível.

Gozo
Entre Closer (“mais próximo”, com o frontispício tumular baseado numa fotografia de Bernard Pierre Wolff no Cemitério Monumental de Staglieno, Génova) e outros dispersos surgiu “Komakino”, levando à letra após uma simples tradução do alemão “Cinema Coma”. Foi em Junho de 1980, já Ian Kevin Curtis garroteara as suas súplicas na madrugada de 18 de Maio de 1980, que aquela voz cavernosa e implacável emergiu das trevas, gravada em milhares de círculos rotativos de plástico flexível, e cantou: «A sombra que se manteve na beira da estrada / Faz-me sempre lembrar de ti.» [versão AMC]

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