A SÚBITA ERECÇÃO DO ENFORCADO*
por Henrique Manuel Bento Fialho
Não consigo entender as pessoas que dançam com o mal dos outros, as pessoas que se divertem sobre os estilhaços da tristeza; não consigo entender os milhões que espreitam o rosto assassino do Papa, nem as hordas que se auto-proclamam campeãs, provavelmente, de vidas miseráveis que logo acomodarão às paredes de casa. Pressinto-as adormecidas ao calor de um aquecedor ranhoso que a qualquer momento promete queimar-lhes a alcatifa onde o cão doméstico larga o pêlo como se largasse o último vestígio da sua selvática condição perdida. Quando era mais novo, deixava arrastar-me pela euforia dos momentos e exultava com bebedeiras que me arrancavam ao destino de quem «cai para dentro do seu próprio labirinto» (Al Berto). À medida que o tempo foi passando, foi tomando conta de mim esta incompreensão. E hoje só me interrogo como foi possível ter um dia dançado ao ritmo da desgraça alheia. O defeito deve ser meu, mas prefiro servir-me da desgraça alheia para tratar feridas próprias. Como se fosse possível aprendermos com a crosta dos outros, paro-me no percurso de um cigarro a arder, fecho os olhos, ajeito-me no chão e vejo percorrer no tecto as legendas de um filme interpostamente vivido.
Os segundos passam vagarosamente, cada vez mais vagarosamente, obrigando-nos a arrancar ao tempo os ponteiros que nos ameaçam como espadas sobre a cabeça, sob pena de enlouquecermos à medida que na brancura do tecto as legendas vão pronunciando um nome: «guess the dreams always end / they don’t rise up just descend / but I don’t care anymore / I’ve lost the will to want more / I’m not afraid, not at all / I watch them all as they fall…» Os segundos passam cada vez mais devagar, o coração palpita assustadoramente, o peito enche-se-nos de um ar doloroso e é como se quisesse rebentar, mas de tão cheio levanta-nos à altura de ficarmos a flutuar o suficiente para que, erguidos, os nossos braços cheguem ao tecto e afastem do nome as ervas daninhas que ameaçam ocultá-lo por baixo da desistência. Tudo nos parece querer fugir a cada segundo que passa, mas cada segundo que passa, ó, passa com as suas grades, adiando a fuga, a fuga, a fuga, para um tempo que julgamos ideal como se houvesse um tempo ideal para fugir «to the depths of the ocean, where all hope sinks».
E com o corpo ali suspenso, nenhuma corda a segurar-nos do chão, o corpo ali vivamente mortificado, olhamos no tecto um choro seco, uma certa forma de chorar que há-de ser o modo como o deserto chora a distância das chuvas, um chorar vertido em lágrimas invisíveis, um chorar pressentido na tremura dos nervos, cortante como punhais afiados que nos atravessam o corpo sem que ninguém note, ninguém mesmo, o sangue que ali coagula, um chorar barrado por crostas que o peito encerra, um chorar que não lava a tristeza do rosto nem deixa o riso vir à garganta, pois já tudo é dor sem tratamento nesse chorar, e nenhum tratamento poderá libertar, aliviar, o corpo da dor que o tomou de assalto. Não consigo entender as pessoas que dançam com o mal dos outros, as pessoas que se divertem sobre os estilhaços da tristeza. «I walked round and round, you nailed me to a tree, trying to find a clue, trying to find a way to get out». Com o corpo assim suspenso, mais a vida nos parece a dança dos espantalhos.
E com as pontas dos dedos o homem, já mais boneco que homem, o espantalho, chega ao tecto. Passa os dedos pelas curvas do nome, é como se os passasse pelas curvas de um rosto, afaga cada um dos veios do nome, estará louco, certamente, mas em cada contorno do nome o homem pressente as curvas de um rosto, e com as pontas dos dedos, muito tímida e nervosamente, ele afaga o nome, o rosto. Rosto a rosto com a frustração, o homem, já mais espantalho que homem, ainda pondera transformar-se num caçador de borboletas, raptar nomes com máscaras de clorofórmio. Enlouquecido, em fúria, ele afasta com as unhas os contornos do nome, ele escarafuncha no tecto uma luz desaparecida, ele mancha de sangue, com as pontas dos dedos estraçalhadas, desfeitas, ele mancha de sangue o texto, crava as unhas no cimento, parte as unhas e as unhas, incrustadas no cimento, gritam os gritos que o homem não logra gritar, porque o homem tem a garganta atada à dor de um chorar barrado por crostas que o peito encerra, ele bem tenta gritar, mas nenhum som, nenhum gemido, nada se lhe solta do peito, só as unhas com que escarafuncha o nome, o rosto, projectado no tecto, as legendas de um nome, as legendas de um rosto. É essa a sua voz, é esse o seu canto. Não consigo entender que alguém possa dançar ao som de um canto assim.
*Respigado no poema «Noite de Lisboa com Auto-Retrato e Sombra de Ian Curtis», por Al Berto.
1 comentário:
onde está escrito:
ele escarafuncha no tecto uma luz desaprecia
deve ler-se:
ele escarafuncha no tecto uma luz desaparecida
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