Outra vez na corrente


O Henrique acorrenta-me outra vez. Desta vez parece que é a poesia. A ideia é retirar “das pilhas periclitantes que se derramam atrás das portas, encostadas às paredes, aquelas pequenas gotas de alma que ficam connosco, mesmo quando nos esquecemos delas”. Este foi um dos poemas que nos últimos tempos mais me disseram. Não é difícil entender a razão, principalmente para quem é um leitor atento deste lugar. Foi através do meu pai que cheguei a Assis Pacheco jornalista. Depois veio o poeta.


Poeta no Supermercado

1.

Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.

Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2.

Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

Cheio de luz - como um sol.
beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.

Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos (1968), em A Musa Irregular, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 25-26.

Convoco: Américo Rodrigues, António Godinho, João Camilo, Sérgio Lavos, Rita Faria.

1 comentário:

Anónimo disse...

Convoco Américo Rodrigues...ah ah ah
és tão previsivel!
ah ah ah