Património Bukowski
por Fernando Esteves Pinto
O pouco que li de Charles Bukowski foi no inferno. Não é que eu frequente muito o inferno propriamente dito, mas às vezes vou lá parar. Na verdade, o primeiro Bukowski que conheci foi o meu irmão Victor Mendes, pescador exímio e dono duma frota de prostitutas. A única diferença entre o meu irmão e Bukowski é que o meu irmão nunca escreveu um poema. De resto estava lá tudo: as tabernas e os esquemas; as meninas dos becos e os clientes das valetas. O vinho e o desespero; as navalhas à vista quando alguém se esquecia que o prazer trazia factura. Como devem perceber, poesia não me faltava. Quando o meu irmão ia para a faina eu é que tomava o lugar dele ao leme do destino das meninas. Ficava a vê-lo partir, as meninas ao meu lado, sentados na areia morna da praia, e elas descruzavam as pernas em sinal de bênção pelo herdeiro que o meu irmão lhes deixava. Nunca comi nenhuma, porque eu não era o Bukowski. A minha função era passear com as damas pelas ruas de Cascais, entrar em alguma tasca para um copo de laranjada. Se havia negócio, o patrão era eu. Lembro-me que uma noite dormi com a rainha: miúda da Madeira, dezoito anos bem usados. Também dessa vez não fui Bukowski. Nem ode nem redondilha – acho que adormeci como um anjo. Quando entrei na adolescência, jurei a mim mesmo que não gostaria de ser um Bukowski. E não sou, decididamente. Raramente entro num bar. Putas, bom dia boa tarde, até porque de noite raramente saio de casa. Conheço todos os ambientes da perversão e da fantasia. Corri perigos. Sei quando elas falam verdade. Esqueci certos pormenores, mas ficou-me um grande respeito pela vida dessas mulheres que contribuíram de alguma forma para a minha formação. De Bukowski, meu irmão pescador, ficou-me as palavras e nunca os seus actos. Não que ele fosse um canalha – sempre o conheci bastante generoso; uma espécie de tecto humano que abrigava as raparigas perdidas. Quando comecei a escrever fui buscar ao passado parte do património do Bukowski. Estão a ver o meu dilema? Aos doze anos de idade fui Bukowski sem escrita e agora sou escritor sem a pinta do Bukowski. Há vidas que só servem para baralhar.
O pouco que li de Charles Bukowski foi no inferno. Não é que eu frequente muito o inferno propriamente dito, mas às vezes vou lá parar. Na verdade, o primeiro Bukowski que conheci foi o meu irmão Victor Mendes, pescador exímio e dono duma frota de prostitutas. A única diferença entre o meu irmão e Bukowski é que o meu irmão nunca escreveu um poema. De resto estava lá tudo: as tabernas e os esquemas; as meninas dos becos e os clientes das valetas. O vinho e o desespero; as navalhas à vista quando alguém se esquecia que o prazer trazia factura. Como devem perceber, poesia não me faltava. Quando o meu irmão ia para a faina eu é que tomava o lugar dele ao leme do destino das meninas. Ficava a vê-lo partir, as meninas ao meu lado, sentados na areia morna da praia, e elas descruzavam as pernas em sinal de bênção pelo herdeiro que o meu irmão lhes deixava. Nunca comi nenhuma, porque eu não era o Bukowski. A minha função era passear com as damas pelas ruas de Cascais, entrar em alguma tasca para um copo de laranjada. Se havia negócio, o patrão era eu. Lembro-me que uma noite dormi com a rainha: miúda da Madeira, dezoito anos bem usados. Também dessa vez não fui Bukowski. Nem ode nem redondilha – acho que adormeci como um anjo. Quando entrei na adolescência, jurei a mim mesmo que não gostaria de ser um Bukowski. E não sou, decididamente. Raramente entro num bar. Putas, bom dia boa tarde, até porque de noite raramente saio de casa. Conheço todos os ambientes da perversão e da fantasia. Corri perigos. Sei quando elas falam verdade. Esqueci certos pormenores, mas ficou-me um grande respeito pela vida dessas mulheres que contribuíram de alguma forma para a minha formação. De Bukowski, meu irmão pescador, ficou-me as palavras e nunca os seus actos. Não que ele fosse um canalha – sempre o conheci bastante generoso; uma espécie de tecto humano que abrigava as raparigas perdidas. Quando comecei a escrever fui buscar ao passado parte do património do Bukowski. Estão a ver o meu dilema? Aos doze anos de idade fui Bukowski sem escrita e agora sou escritor sem a pinta do Bukowski. Há vidas que só servem para baralhar.
5 comentários:
Para se ser poeta não é necessário saber escrever poemas. Há quem prefira vivê-los.
É bem verdade... Vivê-los e depois escrevê-los em poucas linhas
mas escreves muito bem, rapazinho.
cara cândida:
o post que comentou não foi escrito por mim, mas sim pelo escritor Fernando Esteves Pinto
eu sabia.
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