Do Mal

Escrito em francês, publicado em Setembro de 2006, vencedor do Prémio Goucourt e do Grande Prémio do Romance da Academia Francesa, 700.000 exemplares vendidos em França, As Benevolentes é o segundo trabalho de Jonathan Littell (1967), e conta a história de Maximilien Aue (Max Aue), um ex-oficial SS que acompanha a ascensão e queda do regime nazi.

Pensar que As Benevolentes é um livro sobre os horrores da 2ª Grande Guerra Mundial (como um texto na contra-capa indica) é reduzir o livro àquilo que ele na realidade não é. As Benevolentes é, acima de tudo, um livro sobre um homem: Max Aue. Para muitos ele poderá ser a personificação do Mal, mas Max Aue é, sem dúvida, um homem dividido. O Mal existe nele – disso não restam dúvidas. Além disso, Max Aue não se arrepende de nada daquilo que fez: «Culpado, eu?» (p. 26). No entanto, é da luta entre o ser e o dever que a personagem de Max Aue cresce e se forma. Ele é alguém que aprecia literatura, filosofia, que gosta de debater ideias – nunca recusando trocar algumas palavras com os seus inimigos, e até concordar com eles, mesmo antes de os enviar para a morte com um encolher de ombros –, mas que vive preso à farda que veste: «Para dizer a verdade, eu não compreendia grande coisa do que ele ali escrevia [refere-se a Maurice Blanchot]. Mas isso despertava em mim a nostalgia de uma vida que poderia ter tido: o prazer do livre jogo do pensamento e da linguagem, em vez do rigor pesado da lei.» (p. 456). Max Aue é alguém que vive reprimido. Em primeiro lugar, num corpo que rejeita como sendo seu, preferindo antes o corpo da irmã, com quem manteve uma relação incestuosa, relação essa que o atormente, persegue, mas que ele alimenta e recria nas relações homossexuais que mantém: «Pedi-lhe que me tomasse de pé, apoiado contra a cómoda, diante do espelho estreito que dominava o quarto. Quando o prazer se apoderou de mim, mantive os olhos abertos, perscrutei o meu rosto cor de púrpura e medonhamente inchado, procurando ver nele, rosto verdadeiro que preenchia as minhas linhas para lá de mim, as linhas do rosto da minha irmã.» (p. 469). Em segundo lugar, pela figura da mãe, segundo ele a principal responsável pelo desaparecimento do pai e a quem acusa de o ter “morto”. Max Aue é um homem só, desfigurado pelo Mal, e apesar da forma calorosa com que se relaciona com aqueles que o rodeiam, mantém com estes uma relação fria e distante.

Quem lê As Benevolentes encontra uma escrita consistente, leve, que em nada desencoraja quem a lê (apesar das quase 900 páginas). Quem procura neste livro informação sobre o nazismo também a encontra (surgem personagens reais como Hitler, Speer, Hess, Himmler) – o que muitas vezes prejudica o “andamento” da leitura e nada acrescenta ao desenvolvimento da narrativa. Todavia, dizer que este é um livro sobre o nazismo, é tentar encontrar um caminho fácil para não entender a complexidade de uma personagem como Max Aue, que não representa o Mal enquanto elemento exclusivo do regime nazi, mas sim o Mal que qualquer ser humano tem dentro de si e que, numa determinada situação, poderá ser despoletado em nome de algo ou alguém. Não nos podemos esquecer que Jonathan Littell trabalhou com ONGs na Bósnia durante a guerra naquela região nos anos 90 e diz que a ideia para o romance partiu, em certa medida, dessa experiência.

Considerar o livro «um novo Guerra e Paz» (Le Nouvel Observateur), ou dizer ser este «um livro extraordinário pelo que existe nele de certo e de verdadeiro» (Mario Vargas Llosa), é cair no exagero e na frase feita. As Benevolentes é um livro que tem a grande qualidade de estar bem escrito e de confrontar o Homem com ele próprio. Como todos os grandes livros fazem.

Jonathan Littell, As Benevolentes, Lisboa: Dom Quixote, 1ª edição, 2007, 884 pp.

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